MENOTTI DEL PICCHIA
E A EX-PAULICÉIA DE
MÁRIO DE ANDRADE
E A EX-PAULICÉIA DE
MÁRIO DE ANDRADE
(Foto para a Galeria da Academia Paulista de Letras - 1943)
INTRODUÇÃO DOLENTE
(Luiz de Almeida)
(Luiz de Almeida)
Minhas narinas ardiam e o refluxo era incontrolável quando concluí a leitura da maravilhosa crônica “Que dê o inverno?”, de autoria do Helios, ou melhor, do Menotti Del Picchia, publicada nas grossas e hoje amareladas páginas da preciosa Revista da Academia Paulista de Letras, que espirram fungos parasíticos quando as folheio. A referida crônica está na Revista N.º 9, de 12 de setembro de 1940 – ano importantíssimo na vida de Menotti Del Picchia: “publicou o romance Salomé, pela Revista dos Tribunais, São Paulo; publicou pela A Noite Editora, São Paulo: Contos (Obras Completas, I); recebeu Prêmio da Academia Brasileira de Letras pelo romance Salomé”. A nota triste desse 1940, não só para Menotti, foi a morte de Tácito de Almeida, 40 anos, poeta bissexto, participante ativo da Semana de Arte Moderna e da Revista Klaxon, irmão do Poeta Guilherme de Almeida. Para encerrar o ano, Menotti assina com Espasa Calpe, editora Argentina, o contrato da versão para o castelhano do romance “Salomé”. Incumbiu-se da tradução o escritor argentino Alberto Linares, redator da “La Nacion”, de Buenos Aires.
Mas... Retornando ao objeto desta introdução, a crônica “Que dê o inverno?”, do Menotti, após trocentos espirros, concluí a análise e logo após, a digitação. (Não posso esquecer de colocar meus livros antigos num longo banho de sol ou terei que contratar um virologista). E é sobre o resultado dessa minha análise que descreverei algo mais antes de postar o texto do Menotti.
Fiquei atônito a cada leitura e a cada reflexão, pois deparei com muitas coincidências quanto aos fatos narrados por Menotti, 70 anos passados, dando a nítida impressão que o texto fora elaborado dias atrás. Após lerem o texto verão que não estou enganado. A cidade de São Paulo foi impregnada pela mutação. (Menotti disse: banalização). Vejamos:
- Quem conhece a cidade de São Paulo, sabe muitíssimo bem, que não existe mais a “Paulicéia” do Mário de Andrade. A cidade tão versejada e tão musicada, não pode ser mais tratada como a “Terra da Garoa”, título esse recebido, quando nos longínquos períodos de outono, a garoa fina era contínua. Se buscarmos pelo paulistano nato iremos encontrá-los com idades acima de cinqüenta... Acho que até mais. Quem visita a maior metrópole brasileira e tem coragem suficiente para vagar sem rumo pelo centro da cidade, durante o dia, pois à noite nem pensar, percebe que a cidade está mais para uma mitológica Babilônia, ou para as bíblicas Sodoma e Gomorra. E, respirando a poeira industrial, a dos veículos e a da imundície do lixo pelas ruas, o visitante é obrigado a suportar a fetidez da urina e das fezes dos “humanos”. É... Infelizmente. E como é dorido pensar nisso... A mutação pariu e a cidade de São Paulo abortou sua identidade original. E essa perda de identidade não é “regalia” somente da cidade de São Paulo, bem sabemos. Mas o texto do Menotti é sobre a cidade de São Paulo, berçário do Modernismo brasileiro. Desnecessário dissertar mais para que o seleto leitor do Retalhos descubra, ao ler o texto do Menotti, que ainda poderiam ser exemplificadas muitas outras “causas” dessa “perda de identidade paulistana”, tais como as apregoadas de forma direta e nas entrelinhas subliminares pelo autor de Salomé, em 1940. Então, vamos ao texto, onde foi conservada a ortografia original.
Mas... Retornando ao objeto desta introdução, a crônica “Que dê o inverno?”, do Menotti, após trocentos espirros, concluí a análise e logo após, a digitação. (Não posso esquecer de colocar meus livros antigos num longo banho de sol ou terei que contratar um virologista). E é sobre o resultado dessa minha análise que descreverei algo mais antes de postar o texto do Menotti.
Fiquei atônito a cada leitura e a cada reflexão, pois deparei com muitas coincidências quanto aos fatos narrados por Menotti, 70 anos passados, dando a nítida impressão que o texto fora elaborado dias atrás. Após lerem o texto verão que não estou enganado. A cidade de São Paulo foi impregnada pela mutação. (Menotti disse: banalização). Vejamos:
- Quem conhece a cidade de São Paulo, sabe muitíssimo bem, que não existe mais a “Paulicéia” do Mário de Andrade. A cidade tão versejada e tão musicada, não pode ser mais tratada como a “Terra da Garoa”, título esse recebido, quando nos longínquos períodos de outono, a garoa fina era contínua. Se buscarmos pelo paulistano nato iremos encontrá-los com idades acima de cinqüenta... Acho que até mais. Quem visita a maior metrópole brasileira e tem coragem suficiente para vagar sem rumo pelo centro da cidade, durante o dia, pois à noite nem pensar, percebe que a cidade está mais para uma mitológica Babilônia, ou para as bíblicas Sodoma e Gomorra. E, respirando a poeira industrial, a dos veículos e a da imundície do lixo pelas ruas, o visitante é obrigado a suportar a fetidez da urina e das fezes dos “humanos”. É... Infelizmente. E como é dorido pensar nisso... A mutação pariu e a cidade de São Paulo abortou sua identidade original. E essa perda de identidade não é “regalia” somente da cidade de São Paulo, bem sabemos. Mas o texto do Menotti é sobre a cidade de São Paulo, berçário do Modernismo brasileiro. Desnecessário dissertar mais para que o seleto leitor do Retalhos descubra, ao ler o texto do Menotti, que ainda poderiam ser exemplificadas muitas outras “causas” dessa “perda de identidade paulistana”, tais como as apregoadas de forma direta e nas entrelinhas subliminares pelo autor de Salomé, em 1940. Então, vamos ao texto, onde foi conservada a ortografia original.
QUE DÊ O INVERNO?
São Paulo esqueceu de tirar patente do seu invernozinho caracteristico. Alguém o escamoteou...
Nossa garôa era famosa e servia até para inspirar os célebres poetas acadêmicos: “densa garôa faz fumar a lua”... Tinhamos orgulho outr’ora do nosso frio como hoje o temos do estadio municipal. Êsse friozinho alfinetante, estimulador, tônico e desportivo, emprestava-nos um ar heróico. Olhavamos com superioridade para o nortista estorricado pelas soalheiras e que batia os dentes ao menor sopro de um aliseo. Êsse frio era uma espóra na carne: obrigava ao movimento.
O homem do equador quando descia para o planalto tremia como batido de maleita. E nós, então, passavamos perto dele imunizados pelo hábito, ostentando nossa vaidosa indiferença ao gélido soprar das brisas cortantes.
- Eta friozinho gostoso...
Pela manhã, ao sair para o trabalho, iamos deixando pelo caminho a fumacinha branca que saía do nosso hálito. Tinhamos algo de locomotivas.
Hoje tudo mudou. Em pleno fastígio invernal, o sol é um forno capaz de cozinhar pelotas de bodoque em calçada. Ao meio-dia o suor escorre de nossa fronte como si trabalhassemos numa caldeira. Adeus inverno!
Adeus? Não. Obedecendo às loucuras do tempo – a época é de confusão geral – o inverno deslocou-se para dezembro. Quando, antigamente, o sol era uma fogueira e as tempestades se armavam violentas e wagnerianas hoje o ar se torna siberiano... Não há mais coisa alguma no seu lugar. Tudo anda misturado... Basta dizer que, ha dias, segundo rezam os telegramas, em Haia, a cidade das Conferências de Paz, houve uma bagunça dos diabos... Parece que finalmente os seráficos diplomatas daquela cidade se convenceram de que o que o homem quer mesmo é a guerra...
Os alfaiates andam desanimados. Capotes ninguém encomenda mais. O frio abandonou o planalto. Vamos fazer fôrça para que volte. Êle tipifica nossa terra. Sem frio, sem garôa, São Paulo banaliza-se. O sentido heróico da vida se desfaz nessa lasciva preguiça que torna as urbes litorâneas e tropicais tão propensas ao “far niente” e transforma seus habitantes em felizes criaturas contemplativas, de olhos voltados para a paizagem e para as curvas das mulheres.
Isso, porém, não será melhor que viver criando uma civilização cujo passo sempre ruma para a guerra?
Nossa garôa era famosa e servia até para inspirar os célebres poetas acadêmicos: “densa garôa faz fumar a lua”... Tinhamos orgulho outr’ora do nosso frio como hoje o temos do estadio municipal. Êsse friozinho alfinetante, estimulador, tônico e desportivo, emprestava-nos um ar heróico. Olhavamos com superioridade para o nortista estorricado pelas soalheiras e que batia os dentes ao menor sopro de um aliseo. Êsse frio era uma espóra na carne: obrigava ao movimento.
O homem do equador quando descia para o planalto tremia como batido de maleita. E nós, então, passavamos perto dele imunizados pelo hábito, ostentando nossa vaidosa indiferença ao gélido soprar das brisas cortantes.
- Eta friozinho gostoso...
Pela manhã, ao sair para o trabalho, iamos deixando pelo caminho a fumacinha branca que saía do nosso hálito. Tinhamos algo de locomotivas.
Hoje tudo mudou. Em pleno fastígio invernal, o sol é um forno capaz de cozinhar pelotas de bodoque em calçada. Ao meio-dia o suor escorre de nossa fronte como si trabalhassemos numa caldeira. Adeus inverno!
Adeus? Não. Obedecendo às loucuras do tempo – a época é de confusão geral – o inverno deslocou-se para dezembro. Quando, antigamente, o sol era uma fogueira e as tempestades se armavam violentas e wagnerianas hoje o ar se torna siberiano... Não há mais coisa alguma no seu lugar. Tudo anda misturado... Basta dizer que, ha dias, segundo rezam os telegramas, em Haia, a cidade das Conferências de Paz, houve uma bagunça dos diabos... Parece que finalmente os seráficos diplomatas daquela cidade se convenceram de que o que o homem quer mesmo é a guerra...
Os alfaiates andam desanimados. Capotes ninguém encomenda mais. O frio abandonou o planalto. Vamos fazer fôrça para que volte. Êle tipifica nossa terra. Sem frio, sem garôa, São Paulo banaliza-se. O sentido heróico da vida se desfaz nessa lasciva preguiça que torna as urbes litorâneas e tropicais tão propensas ao “far niente” e transforma seus habitantes em felizes criaturas contemplativas, de olhos voltados para a paizagem e para as curvas das mulheres.
Isso, porém, não será melhor que viver criando uma civilização cujo passo sempre ruma para a guerra?
Helios.
(Fonte: Mencionada na introdução).
Oi, Luiz!
ResponderExcluirEu não conheço São Paulo, mas - de fato - a crônica é atualíssima: “Que dê o inverno?”.
“Que dê” a poesia de se transitar nas ruas das cidades brasileiras, curtindo a Lua, a brisa, o friozinho ou o calor sem medos e tormentos mil? Acho que até nas pacatas cidades interioranas está difícil...
O “far niente” da crônica me remeteu ao "Far niente" de Chico Buarque como fundo musical... E o trecho: “Isso, porém, não será melhor que viver criando uma civilização cujo passo sempre ruma para a guerra?” - parece uma profecia! [Profecia de Helios acerca das guerras urbanas.]
Obrigada pelos bons momentos aqui!
Ah! Acho que é possível você colocar, ainda neste inverno, seu material de pesquisa num longo e quente banho de sol.
Um abraço da amiga,
Taninha
Dileta Amiga Minina Taninha:
ResponderExcluirUma interpretação assertiva como Você fez, só poderia vir mesmo de uma Pessoal inteligente e Poeta, que consegue penetrar nas entranhas das linhas subliminares de outro Poeta.
Fui sentindo uma emoção gratificante ao ler Teu comentário.
Te agradeço muitíssimo, não só pela mensagem, mas por estar sempre "antenada" no Retalhos e tratá-lo com tamanho carinho.
Ah... Pode ter certeza que parte da minha biblioteca, neste final de semana prolongado, irá para um belo e medicinal banho de sol.
Abraços e:
"ESTEJA E SEJA E FIQUE FELIZ!"
Luiz de Almeida & Retalhos do Modernismo
Fazendo uma visistinha para me atualiar nas coisas excelentes deste seu espaço. Parabens, sempre.
ResponderExcluirAbração
www.luizalbertomachado.com.br
Amigo Luiz:
ResponderExcluirA Tua visita enobrece o Retalhos e me proporciona alegria e flama para continuar nos estudos e nas pesquisas. Muitíssimo obrigado.
Abraços terno e fraterno
Luiz de Almeida