sábado, 14 de agosto de 2010

MENOTTI DEL PICCHIA - TEXTO

CONFERINDO
MENOTTI DEL PICCHIA
Menotti Del Picchia (Foto Reprodução s/d)

INTRODUÇÃO
( Luiz de Almeida )

Seguindo as postagens sobre Menotti Del Picchia, procurei e encontrei um texto esquecido e talvez “desconhecido” de parte do seleto Público Leitor Menottiano, editado nas amareladas páginas da Revista da Academia Paulista de Letras, em 1940. Um texto sublime onde Menotti, com maestria e amor pelas letras, turibula os literatos e a literatura nacional.
Lendo o referido texto percebe-se o grande amor de Menotti pela arte da escrita. Dessa afirmativa, medra pelas frestas das gavetas empoeiradas da minha memória, os dizeres de Sérgio Milliet no seu Diário Crítico, Vol. I (*) e com introdução marcada pela magistralidade de Antonio Candido:

- “O amor ás letras, como o amor ás artes em geral , á pintura ou á musica, é da mesma espécie. E o crítico se diferencia do amador inteligente e sensível apenas pela capacidade de comentar melhor o que os outros olharam, respiraram e provaram. (...). O bom crítico é aquele com o qual o leitor se compraz em conversar, muitos mais do que aquele de quem ouve os juízos pedantes e o mais das vezes falhos”.


E é exatamente dessa forma que Menotti conduz o texto, demonstrando conhecimento, desprendimento, “amorização” e, principalmente, orgulho da certeza das suas idéias e dos seus sentimentos. Um texto escrito em 1940, mas atualíssimo e pertinente ao nosso tempo e ao momento da nossa literatura e dos nossos literatos. Um exemplo de fidelidade e exaltação aos amigos e aos não tão amigos, mas literatos da época. Um despojamento de si em prol de uma ação enaltecedora aos escritores e amantes da sublime arte da escrita nacional.
Sem mais dilação, eis o referido e deleitável texto do Menotti, quando ainda assinava com o pseudônimo de “Helios” - conservada a ortografia original:


TODOS SOMOS GÊNIOS!

Miraculoso país êste Brasil faro e progressista. Não creio que haja no mundo tão copiosa mésse de gênios como a que esplende nas letras nacionais.

Antigamente gênio literário era um Dostoiewsky, um Ibsen, um Shaw, um Pirandello. Suas obras, apesar da genialidade de tais escritores, era uma resultante de paciente e lente elaboração, filha de uma meditação profunda e de um largo esfôrço de composição. Nasciam assim, para assombro do mundo, um “Crime e castigo”, uns “Espectros”, uma “Joana d’Arc”, uns “Sei personaggi in cerca d’autore”. Apesar da imortalidade que cristalizava tais obras, tornando-as monumentos da cultura humana, não faltavam críticos meticulosos que discutissem a essência dos mesmos. A fôrça da creação vencia, consagrava tais gênios.

Como se vê, antigamente tudo era difícil. Êsse mundo quasi árido de valores, tão angustiado na creação de uma obra sem jaça, deu lugar ao mundo de hoje, agil, tumultuário e fecundo. Só no Brasil aparecem, por ano, trezentos e sessenta e cinco gênios. Não aparecem trezentos e sessenta e seis porque respeitamos a sexta-feira da paixão...

Como se dá êsse fenomeno? Simples: basta lêr os jornais. Não há nada mais animador para a inteligência brasileira que a leitura das nossas críticas literárias. Há gênios diários que brotam do chão como erva. Cada livro que sái dos prélos é “uma obra admirável, um estudo profundo, uma revelação maravilhosa”. Todo o livro que aparece é, no mínimo, “o maior romance, denunciando uma vocação única”. Si se trata da poesia, a classificação é outra: “F. nos dá uma extraordinária mensagem de poesia, na qual um sentido arcano da alma é revelado por uma desnorteante novidade de forma”. A palavra “mensagem” está em plena moda. Quem não faz “mensagens poéticas”, como os antigos chefes do govêrno que faziam sua “mensagem” ao Parlamento, é um pobre bipede triste e estéril, que pasta sonambulico e solitário no campo árido da própria ignorância. Todos têm “a envergadura de um Machado, o realismo de um Lima Barreto, o ímpeto de um Euclídes”. Todos se emparelham com Bilac, quando não passam, por duas cabeças, ao pranteado Vicente...

Assim êste país feliz comparece diante do universo com uma pleiade de romancistas, novelistas e poetas geniais. O gênio aqui espirra do solo, catadupa do alto, referve nas redações e nos cafés, sonoro, prolífico e rutilo.

Os gênios trabalham. Não param. Suas penas não secam a tinta com que um talento feraz empilha laudas e laudas de papel que formam os romances cíclicos, fluviais, que se espraiam, amazonicamente, pela dezena de volumes. Romain Rolan, Martin Du Gard, Pearl Buch são café pequeno diante dêsses Balzacs e Zolas modernos. Há os que tomam o leitor de surpresa e desovam sua duzia de romances na surdina. Há os que alarmam os leitores com a promessa de desdobrar sua obra em dezenas de volumes. Já pelo peso de cada um, se afére o tamanho da ameaça. São centenas de páginas em letra miuda. Proust, coitado, fica na bagagem. P próprio Dumas, si vivesse, teria que coçar a gaforinha de mestiço, batido pela concorrência nacional.

E os gênios continuam a proliferar. Tal qual naquele velho Mexico das revoluções, nosso exército das letras não tem capitães, nem tenentes. Todos são generais, ou melhor, todos somos gênios.


Helios.



(*) Revista da Academia Paulista de Letras, Ano III - nº 9, de 12 de Março de 1940 – PP. 147/148, Notas Diversas – Direção de René Thiollier e Comissão de Redação: Otoniel Mota, Cassiano Ricardo, Menotti Del Picchia e Oliveira Ribeiro Neto.

sábado, 7 de agosto de 2010

MENOTTI DEL PICCHIA :- ENTREVISTA

Foto inédita com Menotti Del Picchia.
A foto registrou a visita que o Escritor Erico Veríssimo fez a Diretoria de Propaganda e Publicidade do Estado, quando Menotti foi diretor. Sentados, da esquerda para a direita: Dr. Carlos Silveira, Erico Veríssimo, MENOTTI DEL PICCHIA e Dr. Osmar Pimentel. Em pé, no mesmo sentido: Vicente Machado, Osvaldo Mariano e Manoel Mendes.
(Foto sem data - original pertencente ao acervo da Exposição Retalhos do Modernismo).

Neste mês de Agosto é comemorado o aniversário de morte de um dos maiores escritores paulista e paulistano, participante ativo da Semana de Arte Moderna de 1922: Paulo Menotti Del Picchia, filho de Luiz Del Picchia e Corina Del Corso Del Picchia, nasceu em 20 de março de 1892, na capital paulista e lá faleceu em 23 de Agosto de 1988.

Por assim ser, o Blog RETALHOS DO MODERNISMO procurará enfatizar neste mês um pouco desse grande modernista, poeta, romancista, contista, ensaísta, crítico literário, pintor, escultor, jornalista, advogado, político, fazendeiro, paulistano e itapirense.

A primeira matéria sobre Menotti: uma entrevista de Menotti concedida ao jornalista Silveira Peixoto (autor de Falam os Escritores, Vols. I e II, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, SP. 1971), que conheceu Menotti em 1931, na redação de A Razão, jornal fundado por Alfredo Egídio de Sousa Aranha. Trabalhou com Menotti no gabinete do governador Pedro de Toledo durante o período da Revolução Constitucionalista de 1932.

Silveira entrevistou o amigo Menotti, em São Paulo. Segue a referida entrevista – conservada a ortografia original:

A tarde é uma algazarra de luzes e de côres. Aperto o botão da campainha, no portão da casa de Menotti – uma vivenda pitoresca, muito agradável, na Avenida Brasil, no Jardim América. A criada não se faz esperar e, daí a instantes, já no “hall”, ouço a voz do escritor, que me vem do pavimento superior:
- Suba, Peixoto! Estou brincando de pintar...
No gabinete de trabalho – um bruáá de livros, de tintas, de quadros e de retratos – dou com o criador de Juca Mulato, pincéis em punho, diante de uma tela quase concluída. Deixem-me assinalar, desde logo, que Menotti também é pintor.
- Vim entrevistá-lo...
Ao mesmo tempo que me oferece uma poltrona, indaga êle:
- Sôbre que é que você pretende ouvir-me?
- Sobre você mesmo.
Êle olha-me, entre surprêso e curioso.
- É isso mesmo: quero uma entrevista sua, sôbre você e sua obra.
- Mas, que é que vou dizer de mim?
- Tudo o que você quiser, contanto que não use de artificialismo.
- Muito bem. Há um prazer especial em falar bem de si próprio, que contrabalança êsse gôsto impulsivo e geral de falar mal dos outros... Vamos à primeira pergunta.
- Quando você começou a escrever?
Depois de meditar um instante, Menotti respondeu:
- Há muita gente que, como você não ignora, imagina que os destinos começam como as corridas de automóvel: com um tiro que marca o instante da partida... É engano. O caso do estalo no crânio do Padre Vieira é milagre raríssimo numa vida... A gente começa a escrever da mesma forma por que começa a falar...
- Como?
- Gaguejando a princípio, meu caro. Não há uma época certa, um marco, uma coisa que assinale o comêço. Lembro-me de que meus primeiros versos, eu os fiz à minha mãe.
- Um poema de amor filial...
- Nada disso. Eu devia ter uns seis anos e ela me trancara num quarto escuro, porque eu fugira da escola. Os versos que fiz foram uma quadra-libelo, um protesto rimado, sôbre o que eu julgava ser uma arbitrariedade e uma violência.
- Versos de revolta, então.
- Exatamente. E deviam ter o ardor panfletário daquele alexandrino de Guerra Junqueiro: “encarcerar a asa é encarcerar o pensamento humano”. A asa era a minha infantil liberdade, uma coisa chucra e indócil, que preferia os grilos do Vale do Anhangabaú e os lambaris ágeis e niquelados que eu pescava no riacho, às lições do pobre mestre-escola do Largo do Arouche.
- Um mestre-escola à antiga...
- Um carrasco que, certa vez, quase me achatou a cabeça com um dicionário... Mas, voltando aos meus primeiros versos: a quadrinha não foi escrita, não; foi declamada, com muita ênfase, através da porta “carcerária”. Minha mãe comoveu-se e soltou-me. Abraçou-me, em lágrimas. Nesse dia, acreditei no milagre da poesia.
- E agora, você não estará fazendo lirismo em tôrno do caso?
- Não. Como tôdas as mães, minha mãe era assim: depois do castigo, entregava os tentos... E foi ela a minha musa e a minha fôrça. Aos sete anos, escrevi um romance.
- Um romance?
- Sim, um romance, ou, melhor, um terrível pastiche do Conde de Monte Cristo. Foi minha mãe a minha única e comovida leitora. Eu a espiava, dissimulando, fingindo não vê-la. Juro que ela acreditou na minha estrêla de romancista.
Menotti faz uma pausa. E por uma natural associação de idéias, lembra, então, o pai:
- Na minha formação literária, há a cumplicidade de meu pai. O velho possuía uma bela cultura humanística. Apreciava tanto a astronomia, a pintura e a arquitetura, como Dante, Ariosto, Tasso e Leopardi. Depois do jantar, punha-se invariàvelmente a recitar: ... “La bocca sollevó dal fiero pasto quel peccator”...
- E você?
- Ficava meio aluado... Que coisas lindas! Não entendia muito bem aquilo... Mas, sentia. A poesia deve ser isso mesmo: uma coisa que a gente adivinha, mas não entende...
- Qual foi o seu primeiro escrito publicado?
- Um jornal inteirinho, do artigo de fundo ao rodapé. Doze anos de idade. Colégio de Pouso Alegre, em Minas Gerais. Meu diretor espiritual: o grande Dom Nery, que soube amar-me como um segundo pai. O jornal chamava-se Mandu, nome do rio mineiro, um rio caprichoso e sujo que, às vêzes, enfezava e resolvia sair das margens, alagar os bairros, encher de milhares de sapos músicos as várzeas da cidade.
- Desde aí você gostava de dar nomes próprios aos que fazia...
- É verdade. Aí estão os meus livros: Moysés, Juca Mulato, Laís, Jesus, Kummunká...
- A razão disso, qual é?
- As obras são criaturas, coisas vivas, que se destacam de nós e andam por aí, realizando uma existência autônoma. É preciso que tenham um nome, tal qual a gente.
- Voltando ao Mandu...
- Era escrito por mim e dirigido por mim e um colega – o Antenor Lemos, hoje médico, rico e pacato. Cuidávamos de tudo: de fazer o jornal, de revê-lo...
- Era impresso? Não era um jornalzinho manuscrito, feito por meninos de colégio?
- Um jornal às direitas. E nós mesmos é que o distribuíamos pela cidade. Tomávamos um carro de praça (grande luxo para ginasianos), e íamos pessoalmente fazer a entrega da fôlha aos assinantes. Isso tinha alguma coisa de triunfal, porque quando o carro parava juntava gente...
- E você conseguia ter liberdade de imprensa?
- Claríssimo. Um dia chegou o Mandu – ou melhor eu – a atacar os padres do colégio...
- O resultado...
- Não foi o que você está supondo, não. Dom Mamede, o reitor, que tinha bondades paternais, mandou me chamar. “Como é isso, menino?” – perguntou êle. “Isso quê?” – disse eu, fingindo surprêsa. “Isso do jornal... É um ato de indisciplina. Afinal, você é aluno do colégio e ataca pùblicamente os professôres? Com que direito?” Foi sem hesitar, foi muito convencido, que redargui, solene: “Com o direito da liberdade de imprensa”...
- Uma punição rigorosa...
- Não nego que o que eu merecia era um bom par de bolos. Dom Mamede, porém, riu. Há petulâncias grotescas; essa que eu pratiquei foi uma...
- E o jornal?
- Teve de suspender a circulação, pouco depois. Acabou. Foi uma sorte para os assinantes... O maior mérito dessa aventura jornalística pertencia aos cavalos que puxavam o famoso carro, no dia da distribuição...
- Qual o primeiro livro que você publicou?
- Poemas do vício e da virtude, uma lenga-lenga cheia muito mais de vícios, que de virtudes. Florada lírica dos 16 anos, descarga poética que nem ao editor fêz mal, pois que foi editado por minha conta.
- É desse livro a “Cantiga do sapateiro”...
- É. Ainda se recita por aí...
- Teve êxito?
- Uma porção de bordoadas desfechadas pelos parnasianos, então triunfantes e contra cujas couraças eu cegamente me atirava. É verdade que o “cérbero literário” daqueles tempos, Osório Duque Estrada, cheirou, no fedelho metido a literato, um futuro poeta. A gritaria dos velhos decidiu de minha carreira: decidiu-me a ser poeta, mesmo contra a vontade de Apolo! E escreve, então: Moysés, Máscaras, Juca Mulato, Chuva de Pedra, República dos Estados Unidos do Brasil.
- Entre seus livros, qual reputa o melhor?
- Não sei, muito ao certo. Talvez o que venha a escrever, ainda. Talvez Juca Mulato... Talvez Tôda nua, talvez Kummunká... É muito comum, nos escritores, quando falam para o público, menosprezar os próprios livros, enquanto no íntimo morrem de amôres por êles... E é natural que a gente goste mesmo de sua obra. Até a coruja vê, nas corujinhas, uns verdadeiros arcanjos...
- Mas, entre os seus “arcanjos”, qual o que você acha mais bonito?
- Gosto dos contos de Tôda nua, e da sátira de Kummunká. Parece-me que, em Tôda nua, os temas são novos e que, em Kummunká, há material o mais diverso: lirismo, realismo, preocupação de debater problemas atuais, poesia, sarcasmo.
- Sôbre as tiragens alcançadas?
- Creio que Juca Mulato e Máscaras representam um recorde. Ambos alcançaram as décimas sextas edições e, conjuntamente, atingiram a casa dos cento e vinte mil exemplares. Para poesia, é extremo favor público.
- Quanto aos outros?
- Números exatos, eu não os possuo. Mas, posso dizer que, há dois anos atrás, um de meus editôres calculava a tiragem global dos vinte oito livros, até então publicados, em cêrca de um milhão de exemplares. E está claro que não posso ficar triste, diante dêsse resultado, embora seja êle produto de vinte anos de vida literária.
- Quais, a seu ver, os elementos que um livro deve reunir, para alcançar sucesso?
- Ai está uma pergunta que não pode ser respondida com a precisão desejada. Nada há de mais imprevisível e surpreendente do que o sucesso de um livro que se vai lançar. É como o jôgo do bicho da anedota: joga-se na cobra e dá a cabra, joga-se na cabra e dá a cobra, joga-se na cobra e na cabra e dá o avestruz... Quando publiquei Juca Mulato, resolvi tirar apenas quinhentos exemplares, na certeza de que pelo menos quatrocentos ficariam em minhas estantes. Acabei vendendo sessenta mil! Quando tirei Kalum, o mistério do sertão, um romance fantástico para a grande massa, imaginei tiragens de dezenas de milhares de exemplares. Saíram apenas uns trezentos e restante jaz nas prateleiras da Livraria do Globo, que o editou. O homem e a morte, tragédia de difícil compreensão, que eu contava restringir-se a uma elite resumida, chegou à terceira edição...
- Daí, você deduz...
- Que o fator predominante no êxito de um livro é o acaso e que a gente não consegue compreender muito bem os caprichos do público. Não há uma lógica determinando o êxito de um livro. Quanto ao valor intrínseco da obra, não é a maior venda que o determina. Os livros, como os homens, têm um destino que a lógica da razão não explica: coisas mediocríssimas caem no goto do público, assim como inúmeros imbecis atingem fàcilmente a glória. A vida tem “uma lógica que a lógica desconhece”...
- Além de literato...
- Nasci, irremediàvelmente, escritor, apesar de ter sido fazendeiro, industrial, banqueiro, político, diretor de vários departamentos públicos e de várias emprêsas...
- Cinematografista, pintor, jornalista...
- Amanheci dentro do jornalismo, com o Mandu. Depois, dirigi A cidade de Itapira, A Tribuna, de Santos, A Gazeta, de São Paulo, e Anhanguera, também da Paulicéia, A Cigarra, a revista São Paulo, Nossa Revista...
- A União Jornalística Brasileira...
- É verdade. Você era meio birrento, como redator-chefe. Bons tempos aquêles, heim? Fui também, redator principal do Correio Paulistano...
- As impressões que você guarda do trabalho na imprensa?
- Por causa de artigos, briguei, várias vêzes, a pau. Fui “hóspede” de presídio político, por causa de jornais. Recebi condecorações, mercê de coisas que publiquei na imprensa... Como se vê, não é possível que a vida de jornal ainda possa oferecer-me surpresas, ou causar-me emoções. Estou por demais calejado na tarimba rude.
- Mas a impressão dominante?
- Jornal é cocaína: vicia. E é um vício trabalhoso, mas divertido. O jornalismo é a acrobacia delirante do talento. Se um articulista escreve mil tópicos bons, ninguém repara... Se o milésimo primeiro sair manquejando, o mínimo que lhe acontece é ser chamado de “burro”...
- “Burro”, no sentido pejorativo, porque afinal de contas, o burro verdadeiro é um animal inteligentíssimo, ponderado... Só os homens é que fazem “burradas”...
E o porco de Trilussa acabou compreendendo que só os homens fazem “porcarias”... O leitor de jornal é, sempre, um desmemoriado: exige tudo e nada quer dar; às vêzes, negaceia até os níqueis que custa a fôlha, pois a lê por empréstimo...
- Ainda não disse quais os autores que mais influíram em sua formação literária?
- Acha que isso poderia interessar a alguém?
- E você acredita que se eu pensasse o contrário iria lembrar?
- Bem. Foi o autor de meus dias, foi meu pai, quem primeiro cuidou de formar meus espírito e de cultivar minhas tendências para a literatura. Os grandes mestres do romance, para mim, continuam sendo Dostoiewsky, Tolstoi, Daudet. Quanto à poesia... A meu ver, o poeta não tem outro mestre, senão o próprio instinto, diante da natureza. Confesso que raras vêzes tenho tido lido um livro de poesias...
- Raras vêzes?
- Sim. É que logo me sinto caceteado...
- Dentre os autores nacionais, quais os que prefere?
- Gosto de fragmentos de uns e de trechos de outros. Raramente vou até à última página, quando leio um de nossos autores modernos. Num livro, quero um pouco mais que literatura e muito mais que reportagem. Está claro que reconheço em Machado de Assis e em José de Alencar dois romancistas de excepcional valor, cada um no seu gênero. E é evidente que vejo grandes mestres em Taunay (pai), em Raul Pompéia, e em Lima Barreto.
(...).
- Quando você estudou escultura? Quando começou a esculpir?
- À primeira pergunta, respondo negativamente. Com efeito, nunca estudei escultura, como nunca li um tratado de metrificação. Fui sempre intuitivo. Um dia, senti, nem sei por quê, que tinha nos dedos o segrêdo das formas.
- E nesse dia pôs as mãos no barro...
- É verdade. Foi quando o grande Cardeal Arcoverde foi a Pouso Alegre, a fim de sagrar dois bispos. Dom Nery incumbiu-me de preparar a ornamentação dos recreios do colégio. Eu tinha doze anos e uma curiosidade infinita. Tracei os planos: lanternas, um grande navio, que serviria de coreto, com canhões disparando tiros coloridos de pistolões pacíficos e fumarentos; arcos de triunfo... Veio de repente aquela idéia: e se levantasse um monumento ao Cardeal Arcoverde? Resolvi colocá-la em execução. Fiz que trouxessem o barro necessário e, com entusiasmo digno de melhor artista, moldei um busto enorme do príncipe da nossa Igreja. Coloquei-o num pedestal, pintei-o de verde, soprei purpurina sôbre a tinta fresca e o trabalho tomou um ilustre colorido de bronze!
- E ficou parecido?
- Escute o resto. Quando o cardeal viu aquilo, ficou assombrado... Não sei se pela monstruosidade da “coisa”, ou se pela audácia da emprêsa. “Quem fez isto?” E Dom Nery, orgulhoso: “Foi o Paulo”. Toca a procurar o Paulo...
- Paulo?
- Você não se recorda, então, de que é êsse o meu primeiro nome?
- É verdade!...
- Eu me escondera, envergonhado, pois só então pudera ter consciência do crime que acabava de cometer. mas Dom Arcoverde, que era a bondade em pessoa, ergueu o fedelho que eu era nos braços: “Você vai comigo para o Rio, menino!” E eu, embezerrado: “Mas, eu não largo Dom Nery por coisa nenhuma dêsse mundo!”
- Depois...
- Como você sabe, não foi êsse o meu único atentado. Quando tenho tempo, amasso barro. Não é essa uma das modalidades do sistema paulista de descansar carregando pedras?
(...).
- Tem algum livro em projeto?
- Todos os dias nasce e morre um no meu cérebro. Se pudesse escrevê-los com a mesma rapidez com que um relâmpago ziguezagueia aos nossos olhos!... Então, poderia produzir livros às toneladas!... Qual o livro que escreverei amanhã? Não sei. Se me propuser escrever um romance, é possível que saia um poema... Não cultivo o imprevisto, pelo gôsto da originalidade. O que se dá é bem diferente: entrego-me aos meus instintos. Estou convencido de que não criamos os personagens de nossas obras; são eles que criam, dentro de nós, as obras que escrevemos.
Faz uma pausa ligeira para acrescentar;
- O artista é um médium das coisas que querem se revelar, através de sua sensibilidade...
Olha-me, um tanto desconfiado. E recomenda:
- Mas, não vá agora dizer que sou espírita, hein!

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FONTE:
- Silveira Peixoto, José Benedito. Falam os Escritores – Vol. I – Org. Comissão de Literatura do Conselho Estadual de Cultura de São Paulo – Editora da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2ª Edição, São Paulo, 1971 – PP. 91/103;

SOBRE MENOTTI NO BLOG RETALHOS:

http://literalmeida.blogspot.com/2008/01/conferncia-de-menotti-durante-semana-de.html