domingo, 12 de setembro de 2010

PAU BRASIL - OSWALD DE ANDRADE: EM PRIMEIRA EDIÇÃO FRANCESA

“PAU BRASIL”
DO OSWALD DE ANDRADE
EM PRIMEIRA EDIÇÃO FRANCESA

Capa da edição francesa do “Pau Brasil” de Oswald de Andrade, pela
“Editions de la Différence”, 2010.

INTRODUÇÃO
Luiz de Almeida

O meu primeiro contato com o pesquisador e tradutor Antoine Chareyre (*), residente em Grenoble, França, foi após a postagem da matéria sobre o Poeta bissexto Luís Aranha, em março de 2009 - (Veja: http://literalmeida.blogspot.com/2009/03/luis-aranha-poeta-modernista-bissexto.html). Naquela ocasião, Antoine estava pesquisando o Poeta – e até hoje nos correspondemos mantendo constante permuta de informações literárias e ocasionais entre Brasil & França.
Recentemente recebi de Antoine, parte substancial da sua tradução bilíngue e crítica do “Pau Brasil”, do Oswald de Andrade, já editada pela “Editions de la Différence”, Paris: http://www.ladifference.fr/
Sem perda de tempo, solicitei àquele tradutor que elaborasse uma explanação a respeito do “Bois Brésil (Poésie et Manifeste)”, para postar no Retalhos, narrando o histórico dessa sua tradução e da edição francesa. E, gentilmente, Antoine enviou o solicitado, dando a honra ao Retalhos da divulgação inédita desse grande acontecimento para a Literatura Brasileira, como segue:

POESIA DE EXPORTAÇÃO… EXPORTADA!

Ao pedido de Luiz de Almeida, amigo dos amigos do Modernismo… venho com alegria apresentar, aos leitores do blog Retalhos do Modernismo, um pouco do que me levou a idealizar a tradução francesa do Pau Brasil de Oswald de Andrade que está chegando nas livrarias, e o que essa edição pode simbolizar no destino do Modernismo brasileiro fora do país.
Como se sabe, Oswald viveu ricos meses em Paris, durante o ano 1923. Lá encontrou, entre muitos outros, o poeta suíço-francês Blaise Cendrars, grande figura da vanguarda parisiense desde antes a primeira guerra mundial, e que ficaria mais tarde bem conhecido pela temática brasileira desenvolvida na sua obra narrativa ou ensaística (e aqui se deve lembrar o livro dele ultimamente traduzido em português do Brasil, O loteamento do céu, pela Companhia das Letras, em 2009). Foi de volta ao Brasil que Oswald publicou, já no início de 1924, o seu Manifesto da Poesia Pau Brasil, onde dava o nome de Cendrars como exemplo, e ainda se sabe que a escritura dos poemas a sair em livro pela editora parisiense Au Sans Pareil, em 1925, com dedicatória ao próprio Cendrars, se desenvolveu com a cumplicidade deste, que fazia sua primeira viagem no Brasil, em 1924… Todo isso, e mais outras considerações, significa que parte da vida e da obra poética do Oswald não se pode entender sem estudar essa relação com a modernidade francesa, o que também se deve considerar no âmbito do movimento modernista, que foi tão atento a atualidade cultural de Europa: os pesquisadores brasileiros já exploraram bastante essa história, pesquisa que resultou em alguns livros famosos, e que ainda pode ser desenvolvida. Mas significa também, mudando o ponto de vista, que em França um verdadeiro conhecimento da história literária e cultural deveria incluir essa presença de tantos jovens brasileiros no Paris da década 20… mas até hoje é coisa que interessa pouca gente. Em primeiro lugar, esse é o contexto no qual surge agora a edição francesa do Pau Brasil.
Eu mesmo desconhecia tudo do Modernismo antes de uma viagem em 2007. Já estudava havia tempo a poesia das vanguardas francesas e européias dos anos 1910 e 1920. Quem se interessa na questão das vanguardas históricas do século XX sabe que a dimensão internacional dos fatos é primordial. Então, quando parti para o Brasil, botei nas malas o livrinho de Cendrars, "Feuilles de route: I. Le Formose", poemas da ida ao Brasil em 1924. Já representava, por isso, um bom guio simbólico para minha primeira viagem. Mas uma curiosidade do livro fica na dedicatória coletiva, onde Cendrars transcreveu (com muitos erros nas grafias…) os nomes dos amigos que lhe acolheram no Rio, em Santos e em São Paulo, e que não são outros do que os integrantes do então movimento modernista (nem todos, alias, passaram para a posteridade com igual sucesso…). Chegando lá, interroguei um amigo sobre quais eram os mais famosos desses nomes na literatura brasileira. Não me lembro bem da resposta, mas sem duvida o nome de Oswald obteve um dos primeiros lugares. Fui então às livrarias das cidades por onde passei: Brasília, São Paulo, Rio, e comecei uma pequena coleção de livros modernistas… Voltei com o "Pau Brasil", que meses depois decidi traduzir, estimulado especialmente pelo longo estudo de Haroldo de Campos que ainda hoje se pode ler como prefácio na edição Globo, e que também acabei por traduzir, em edição avulsa (veja:
http://www.lespressesdureel.com/home.php ), para acompanhar simultaneamente a do Pau Brasil, oferecendo assim, ao leitor francês, tanto uma obra fundamental como um gesto crítico que foi tão importante na sua redescoberta no próprio Brasil… Ora, foi então que começou, além do trabalho da tradução propriamente dita, uma pesquisa estupenda que cada vez mais me enlouqueceu; li tudo e descobri a riqueza das relações franco-brasileiras no caso de Oswald, assim como no do Modernismo em geral, e fiquei com a certeza do que tudo isso deveria chamar a atenção dos leitores franceses, além dos nossos poucos especialistas em literatura luso-brasileira. Li os lindos ensaios de Paulo Prado, vi a pintura de Tarsila (de quem o único quadro conservado em França, seja dito de passagem, se encontra no Museu de Grenoble, cidade onde moro; se trata d’A Cuca, que integrava a primeira exposição individual da pintora, em Paris em 1926…), mas também revisitei a obra do bilíngue Sérgio Milliet, outro brasileiro de Paris, e cuja poesia às vezes tem semelhanças com a do Oswald, mas isso por outro caminho que será outra história: a do meu encontro com a obra de Mário de Andrade, que desde logo comentou os poemas de Milliet, junto com os de Luís Aranha, no ensaio "A escrava que não é Isaura", redigido em 1922 e publicado em 1925. Por isso, vim a traduzir e organizar um livro de Luís Aranha e outro de Milliet, com poemas, prosa narrativa e textos críticos, a sair logo, e que talvez resulte mais tarde em uma edição brasileira quase gêmea, sendo que Milliet foi bastante esquecido no Brasil, ao que parece; também estão se preparando dois livros de Mário de Andrade, um com a "Paulicéia Desvairada', outro com a "Escrava e outros ensaios", para o ano 2011, e mais tarde, sem dúvida, chegarão Ronald de Carvalho, Paulo Prado, Alcântara Machado e outros… Isso para dizer que o "Pau Brasil", essa “poesia de exportação”, sai agora como marco simbólico de uma série de publicações especialmente focalizando a produção do Modernismo brasileiro tão ignorado em França, a não ser os grandes Drummond e Bandeira, cuja poesia foi traduzida há tempo, e os romances mais famosos dos dois Andrade. Tem toda uma geração que carecemos integrar, desde aqui, na história internacional das vanguardas, e acho lindo o fato do 'Pau Brasil" ser o estandarte dessa aventura editorial. Nem outro era o intuito do próprio Oswald, na época, se não me engano.
Enfim, talvez seja de alguma utilidade essa poesia oswaldiana chegando só agora nas livrarias francesas. Pois, de fato, se trata da primeira tradução em francês (note-se que a primeira tradução do Pau Brasil, em espanhol, é do ano 2008…), mas também da primeira edição crítica mundial. O que devia ser uma simples tradução ficou um monstro de edição, mas era preciso ser assim, sendo tudo para fazer em uma só vez.
No longo prefácio que redigi, e nas notas demasiado numerosas à tradução, além da matéria dirigida ao leitor francês (tomando em conta a diferença cultural e a necessidade de dar a conhecer fatos do movimento modernista), pude reunir uma quantidade de informações que resultaram em um balanço das pesquisas até hoje realizadas no Brasil (e às vezes em França) sobre a obra e seu contexto, além de alguns pontos que pretendo divulgar, do meu ponto de vista francês ou não. Deixo cada um ler e descobrir, mas acho mesmo que certas coisas da edição só poderão chamar a atenção, como novidades, dos que, entre os brasileiros, já conhecem bastante o Oswald… Assim concebi o livro como um empreendimento verdadeiramente franco-brasileiro, em correspondência contumaz com o que compõe a bio-bibliografia de Oswald, e nada me será mais caro do que encontrar curiosidade e simpatia também do lado brasileiro.

Antoine Chareyre.

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NOTA:

(*) ANTOINE CHAREYRE – Síntese Biográfica:
- Nascido em 1980, em França, numa região sem cultura nenhuma onde nem se encontrava um livro por cada quilômetro quadrado;
- 1998: Iniciou estudos em literatura francesa, pela Universidade Stendhal, na cidade de Grenoble. Decidiu se dedicar profissionalmente ao estudo da poesia moderna, especialmente no quadro dos movimentos vanguardistas de 1910/20;
- 2001/02: Esse encontro progressivo com a poesia teve início, na verdade, com a obra do poeta e escritor Henri Michaux. Para ganhar o pão, passou anos aborrecedores para conseguir nos concursos públicos e ficou professor « agrégé » em letras modernas no ensino secundário;
- 2005: Voltou à pesquisa propriamente dita e fez o Mestrado sobre as relações entre poesia e música no uso experimental da vocalidade;
- 2006: Iniciou o Doutorado sobre a questão da abstração lingüística nas invenções poéticas das primeiras vanguardas, pesquisa ainda em andamento, ao mesmo tempo em que dá cursos de literatura na Universidade. Iniciou, por motivos pessoais, o estudo da língua portuguesa;
- 2007: Viajou ao Brasil pela primeira vez, de onde concebeu interesse para o Modernismo brasileiro e ficou tradutor, especialmente para divulgar no seu país aquela poesia modernista que pretende ao mesmo tempo estudar do ponto de vista de um pesquisador francês inteiramente dedicado ao vanguardismo universal;
- 2010: Conclui a tradução do livro “Pau-Brasil”, do Oswald de Andrade. Seus projetos atuais: concluir a tese de Doutorado, acabar as várias traduções em andamento, idealizar outras... E voltar ao Brasil.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

MENOTTI DEL PICCHIA E A PAULICÉIA

MENOTTI DEL PICCHIA
E A EX-PAULICÉIA DE
MÁRIO DE ANDRADE

Menotti Del Picchia
(Foto para a Galeria da Academia Paulista de Letras - 1943)

INTRODUÇÃO DOLENTE
(Luiz de Almeida)
Minhas narinas ardiam e o refluxo era incontrolável quando concluí a leitura da maravilhosa crônica “Que dê o inverno?”, de autoria do Helios, ou melhor, do Menotti Del Picchia, publicada nas grossas e hoje amareladas páginas da preciosa Revista da Academia Paulista de Letras, que espirram fungos parasíticos quando as folheio. A referida crônica está na Revista N.º 9, de 12 de setembro de 1940 – ano importantíssimo na vida de Menotti Del Picchia: “publicou o romance Salomé, pela Revista dos Tribunais, São Paulo; publicou pela A Noite Editora, São Paulo: Contos (Obras Completas, I); recebeu Prêmio da Academia Brasileira de Letras pelo romance Salomé”. A nota triste desse 1940, não só para Menotti, foi a morte de Tácito de Almeida, 40 anos, poeta bissexto, participante ativo da Semana de Arte Moderna e da Revista Klaxon, irmão do Poeta Guilherme de Almeida. Para encerrar o ano, Menotti assina com Espasa Calpe, editora Argentina, o contrato da versão para o castelhano do romance “Salomé”. Incumbiu-se da tradução o escritor argentino Alberto Linares, redator da “La Nacion”, de Buenos Aires.
Mas... Retornando ao objeto desta introdução, a crônica “Que dê o inverno?”, do Menotti, após trocentos espirros, concluí a análise e logo após, a digitação. (Não posso esquecer de colocar meus livros antigos num longo banho de sol ou terei que contratar um virologista). E é sobre o resultado dessa minha análise que descreverei algo mais antes de postar o texto do Menotti.
Fiquei atônito a cada leitura e a cada reflexão, pois deparei com muitas coincidências quanto aos fatos narrados por Menotti, 70 anos passados, dando a nítida impressão que o texto fora elaborado dias atrás. Após lerem o texto verão que não estou enganado. A cidade de São Paulo foi impregnada pela mutação. (Menotti disse: banalização). Vejamos:
- Quem conhece a cidade de São Paulo, sabe muitíssimo bem, que não existe mais a “Paulicéia” do Mário de Andrade. A cidade tão versejada e tão musicada, não pode ser mais tratada como a “Terra da Garoa”, título esse recebido, quando nos longínquos períodos de outono, a garoa fina era contínua. Se buscarmos pelo paulistano nato iremos encontrá-los com idades acima de cinqüenta... Acho que até mais. Quem visita a maior metrópole brasileira e tem coragem suficiente para vagar sem rumo pelo centro da cidade, durante o dia, pois à noite nem pensar, percebe que a cidade está mais para uma mitológica Babilônia, ou para as bíblicas Sodoma e Gomorra. E, respirando a poeira industrial, a dos veículos e a da imundície do lixo pelas ruas, o visitante é obrigado a suportar a fetidez da urina e das fezes dos “humanos”. É... Infelizmente. E como é dorido pensar nisso... A mutação pariu e a cidade de São Paulo abortou sua identidade original. E essa perda de identidade não é “regalia” somente da cidade de São Paulo, bem sabemos. Mas o texto do Menotti é sobre a cidade de São Paulo, berçário do Modernismo brasileiro. Desnecessário dissertar mais para que o seleto leitor do Retalhos descubra, ao ler o texto do Menotti, que ainda poderiam ser exemplificadas muitas outras “causas” dessa “perda de identidade paulistana”, tais como as apregoadas de forma direta e nas entrelinhas subliminares pelo autor de Salomé, em 1940. Então, vamos ao texto, onde foi conservada a ortografia original.

QUE DÊ O INVERNO?

São Paulo esqueceu de tirar patente do seu invernozinho caracteristico. Alguém o escamoteou...
Nossa garôa era famosa e servia até para inspirar os célebres poetas acadêmicos: “densa garôa faz fumar a lua”... Tinhamos orgulho outr’ora do nosso frio como hoje o temos do estadio municipal. Êsse friozinho alfinetante, estimulador, tônico e desportivo, emprestava-nos um ar heróico. Olhavamos com superioridade para o nortista estorricado pelas soalheiras e que batia os dentes ao menor sopro de um aliseo. Êsse frio era uma espóra na carne: obrigava ao movimento.
O homem do equador quando descia para o planalto tremia como batido de maleita. E nós, então, passavamos perto dele imunizados pelo hábito, ostentando nossa vaidosa indiferença ao gélido soprar das brisas cortantes.
- Eta friozinho gostoso...
Pela manhã, ao sair para o trabalho, iamos deixando pelo caminho a fumacinha branca que saía do nosso hálito. Tinhamos algo de locomotivas.
Hoje tudo mudou. Em pleno fastígio invernal, o sol é um forno capaz de cozinhar pelotas de bodoque em calçada. Ao meio-dia o suor escorre de nossa fronte como si trabalhassemos numa caldeira. Adeus inverno!
Adeus? Não. Obedecendo às loucuras do tempo – a época é de confusão geral – o inverno deslocou-se para dezembro. Quando, antigamente, o sol era uma fogueira e as tempestades se armavam violentas e wagnerianas hoje o ar se torna siberiano... Não há mais coisa alguma no seu lugar. Tudo anda misturado... Basta dizer que, ha dias, segundo rezam os telegramas, em Haia, a cidade das Conferências de Paz, houve uma bagunça dos diabos... Parece que finalmente os seráficos diplomatas daquela cidade se convenceram de que o que o homem quer mesmo é a guerra...
Os alfaiates andam desanimados. Capotes ninguém encomenda mais. O frio abandonou o planalto. Vamos fazer fôrça para que volte. Êle tipifica nossa terra. Sem frio, sem garôa, São Paulo banaliza-se. O sentido heróico da vida se desfaz nessa lasciva preguiça que torna as urbes litorâneas e tropicais tão propensas ao “far niente” e transforma seus habitantes em felizes criaturas contemplativas, de olhos voltados para a paizagem e para as curvas das mulheres.
Isso, porém, não será melhor que viver criando uma civilização cujo passo sempre ruma para a guerra?
Helios.

(Fonte: Mencionada na introdução).