terça-feira, 25 de janeiro de 2011

A ORIGEM DE MACUNAÍMA - MÁRIO DE ANDRADE


A ORIGEM DE MACUNAÍMA:

“EU COPIEI O BRASIL...” (Mário de Andrade)

Ilustração de Carybé, p. 90 do livro: Macunaíma - Ed. LTCE/USP - SP.


INTRODUÇÃO
  (Luiz de Almeida)
Macunaíma, sem dúvida, além de ser uma das obras marioandradianas mais discutidas sempre causa polêmicas. Tenho recebido vários pedidos, desde o início do segundo semestre de 2010, maioria estudantes, interessados no depoimento de Mário de Andrade sobre a origem do Macunaíma. Os interesses são diversos: uns, na veracidade ou não das palavras do próprio Mário; outros, para matar a curiosidade a respeito do assunto; e quase todos, para terem o depoimento nos seus arquivos. Tudo bem. Isso é bom tratando-se da maioria ser estudantes. Ótimo para o RETALHOS DO MODERNISMO, pois consegue atingir seus objetivos primeiros.  
Esse “tal” depoimento nada mais é que o artigo publicado no periódico paulista Diário Nacional, edição de 20 de setembro de 1931, dedicado a Raimundo Moraes, por Mário de Andrade. Esse e outros textos podem ser encontrados no belo trabalho elaborado pelo IEB/USP, capitaneado por Telê Porto Ancona Lopez, editado pela Livraria Duas Cidades & Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia, São Paulo, com o título: “Mário de Andrade Taxi e Crônicas no Diário Nacional”. No texto solicitado, p.  433 do livro mencionado, Mário de Andrade descreve como surgiram a ideia e o conteúdo do “Macunaíma”, assim como outras informações pertinentes. Lembro-me que adquiri esse livro no final da década de 70 e passei bom tempo lendo e relendo. Foi a partir dessas leituras que iniciei meus estudos e pesquisas sobre Mário de Andrade e o Modernismo Brasileiro. Atualmente, caso o dileto leitor interesse,  a edição do "Mário de Andrade Taxi e Crônicas no Diário Nacional", cuja capa é mostrada  no final deste parágrafo, pode ser encontrado em bons sebos. Não tenho receio ao afirmar que: é um livro que todo apaixonado pela literatura, todo estudante, jornalista, escritor, precisam ter e ler e estudar. O livro é espetacular. É  conveniente salientar que Mário de Andrade, como descrito no referido livro, p. 16: “(...) deixou vastíssima produção no Diário Nacional: 771 textos entre crônicas, artigos, ensaios, poemas e ficção, tendo sido responsável pelas seções: “Artes” e “Livros e Livrinhos”. (...)” – e, portanto, importantíssimo “tentar” adquiri-lo para degustar parte substancial e relevante dos textos marioandradianos

Mário de Andrade - Taxi e Crônicas no Diário Nacional - Ed. Livraria Duas Cidades.
Não posso deixar de mencionar também que: para ler ou estudar “Macunaíma”, o interessado, obrigatoriamente, necessita conhecer, ter, ler e estudar os seguintes livros: “Roteiro de Macunaíma”, do cuiabano: Manuel Cavalcanti Proença, Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro; “Macunaíma: A Margem e o Texto”, Telê Porto Ancona Lopez, Editora Hucitec & Secretaria de Cultura, Esporte e Turismo, São Paulo - (este, na p. 98, também traz o artigo de Mário de Andrade referido no parágrafo anterior); e “Mário de Andrade – Macunaíma o herói sem nenhum caráter”, edição crítica de Telê Porto Ancona Lopez, LTC – Livros Técnicos e Científicos Editora S.A., Rio de Janeiro, 1978, em co-edição com a Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo. E, caso o Dileto leitor tenha um tempinho sobrando, acesse: http://literalmeida.blogspot.com/2008/02/para-enternder-leitura-de-macunama.html
Após essa introdução (necessária), transcrevo o texto solicitado e denominado pela maioria como: “depoimento de Mário de Andrade sobre a origem do seu livro Macunaíma”. (Talvez através deste texto boa parte dos interessados adquira os livros mencionados acima, pelo menos um para estudar mais Mário de Andrade).

                                         
DIÁRIO NACIONAL. Domingo, 20 de setembro de 1931

A RAIMUNDO MORAES

Meu ilustre e sempre recordado escritor.
Não imagina a intensa e comovida surpresa com que ontem, no segundo volume do seu Meu dicionário de cousas da Amazônia ao ler na página 146 o verbete sobre Theodor Kock Grumberg (naturalmente o sr. se refere a Kock-Grunberb, ou em nossa letra, Koch-Gruenberg), topei com a referência a meu nome e a defesa que faz de mim. Mas como esta minha carta é pública pra demonstrar a admiração elevada que tenho pelo escritor de Na planície amazônica, acho melhor citar o trecho do seu livro pra que os leitores se inteirem do que se trata: “Os maldizentes afirmam que o livro Macunaíma do festejado escritor Mário de Andrade é todo inspirado no Von Roraima zum Orinoco do sábio (Koch-Gruenberg). Desconhecendo eu o livro do naturalista germânico, não creio nesse boato, pois o romancista patrício, com quem privei em Manaus, possui talento e imaginação que dispensam inspirações estranhas”.
Ora apesar de toda a minha estilizada, exterior e conscientemente praticada humildemente, me é lícito imaginar que embora o sr. não acredite na malvadeza desses maldizentes, sempre a afirmativa deles calou no seu espírito, pois garante o boato pra garantir com incontestável exagero, o meu valor. Sempre tive a experiência da sua generosidade, mas não deixou de me causar alguma pena que o seu espírito sempre alcandorado na admiração dos grandes, preocupado com sucurijus tão tamanhas e absorventes como Hartt, Gonçalves Dias, Washington Luís, José Júlio de Andrade, presidentes, interventores, Ford e Fordlândia, se inquietasse por um pium tão gito que nem eu. E para apagar do seu espírito essa inquietação tomo desesperada ousadia de lhe confessar o que o meu Macunaíma.
O sr. muito milhor do que eu, sabe o que são os rapsodos de todos os tempos. Sabe que os cantadores nordestinos, que são nossos rapsodos atuais, se servem dos mesmos processos dos cantadores da mais histórica antiguidade, da Índia, do Egito, da Palestina, da Grécia, transportam integral e primariamente tudo o que escutam e lêem pros seus poemas, se limitando a escolher entre o lido e escutado e a dar ritmo ao que escolhem pra que caiba nas cantorias. Um Leandro, um Athayde nordestinos, compram no primeiro sebo uma gramática, uma geografia, ou um jornal do dia, e compõem com isso um desafio de sabença, ou um romance trágico de amor, vivido no Recife. Isso é o Macunaíma e esses sou eu.
Foi lendo de fato o genial etnógrafo alemão que me veio a idéia de fazer do Macunaíma um herói, não do “romance” no sentido literário da palavra, mas de “romance” no sentido folclórico do termo. Como o sr. vê, não tenho mérito nenhum nisso, mas apenas a circunstância ocasional de, num país onde todos dançam e nem Spix e Matius, nem Schlichhorst, nem von dem Steinen estão traduzidos, eu dançar menos e curiosear nas bibliotecas gastando o meu troco miudinho, miudinho, de alemão. Porém Macunaíma era um ser apenas do extremo norte e sucedia que a minha preocupação rapsódica era um bocado mais que esses limites. Ora, coincidindo essa preocupação com conhecer intimamente um Teschauer, um Barbosa Rodrigues, um Hartt, um Roquete Pinto e mais umas três centenas de cantadores do Brasil, dum e de outro fui tirando tudo o que me interessava. Além de ajuntar na ação incidentes característicos vistos por mim, modismos, locuções, tradições ainda não registradas em livro, fórmulas sintáticas, processos de pontuação oral, etc. de falas de índio, ou já brasileiras, temidas e refugadas pelos geniais escritores brasileiros da formosíssima língua portuguesa.
Copiei, sim, meu querido defensor. O que me espanta e acho sublime de bondade, é os maldizentes se esquecerem de tudo quanto sabem, restringindo a minha cópia a Koch-Grunberg, quando copiei todos. E até o sr., na cena da Boiúna. Confesso que copiei, copiei às vezes textualmente. Quer saber mesmo? Não só copiei os etnógrafos e os textos ameríndios, mas ainda, na Carta pra Icamiabas, pus frases inteiras de Rui Barbosa, de Mário Barreto, dos cronistas portugueses coloniais, e devastei a tão preciosa quão solene língua dos colaboradores da Revista da Língua Portuguesa. Isso era inevitável pois que o meu... isto é, o herói de Doch-Grunberg, estava com pretensões a escrever um português de lei. Concordo, mas nem isso é invenção minha pois que é uma pretensão copiada de 99 por cento dos brasileiros! Dos brasileiros alfabetizados.
Enfim, sou obrigado a confessar duma vez por todas: eu copiei o Brasil, ao menos naquela parte em que me interessava satirizar o Brasil por meio dele mesmo. Mas nem a idéia de satirizar é minha pois já vem de Gregório de Matos, puxa vida! Só me resta pois o acaso dos Cabrais, que por terem em provável acaso descoberto em provável primeiro lugar o Brasil, o Brasil pertence a Portugal. Meu nome está na capa de Macunaíma e ninguém o poderá tirar. É certo de que tem em mim um quotidiano admirador.
                                                                                  MÁRIO DE ANDRADE

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FONTES PESQUISADAS:

- Livros mencionados na Introdução desta postagem;
- “Carybé” – Bernabó, Héctor Julio Páride & Lima, Antônio Bento de Araújo. Macunaíma. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos Editora S.A. USP, São Paulo, 1979. Edição comemorativa do cinquentenário da publicação de Macunaíma O Herói Sem Nenhum Caráter, de Mário de Andrade. 1928-1979, com ilustrações de Carybé, comentários de Antônio Bento;
- Diabert, Arlindo. Macunaíma de Andrade. Juiz de Fora, MG - Ed. UFJF. Edição comemorativa dos 500 anos do descobrimento do Brasil, 150 anos de emancipação de Juiz de Fora e 40 anos da fundação da UFJF;    
- Koch-Grunberg, Theodor. Do Roraima ao Orinoco - Vol. 1. São Paulo: Ed. UNESP, 2006. Tradução: Cristina Alberts-Franco. Apresentação: José Mindlin.