terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

PARA ENTENDER A LEITURA DE MACUNAÍMA DO MÁRIO DE ANDRADE


Muitos reclamam que ao ler Macunaíma não entenderam muita coisa ou quase nada. Macunaíma precisa ser estudado e lido ao mesmo tempo. Existem vários estudos sobre o assunto. Um dos mais importantes é da Telê Porto Ancona Lopes (que entende mais de Mário de Andrade do que ele próprio o entendeu), editado pela LTC em co-edição com a Secretaria da Cultura Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo, em Edição de 1978 - com a espetacular crítica da Telê Ancona Lopes - é um dos livros que precisa ser estudado conjuntamente à leitura de Macunaíma. Um dos textos simples para um entendimento rápido é o postado a seguir. É meio longo... mas vale a pena.


A seguir o texto de estudos simplificados sobre o livro: Macunaíma:

MACUNAÍMA
(Preparação: Prof. Menalton Braff)

O AUTOR: MÁRIO RAUL MORAIS DE ANDRADE

"Versátil e culto, influente por seus escritos, pela atuação de homem público e pela enorme irradiação pessoa, Mário Raul de Morais Andrade nasceu em São Paulo, a 9 de outubro de 1893, e morreu na sua casa da Rua Lopes Chaves, bairro da Barra Funda, aos 25 de fevereiro de 1945." Fez o curso de piano, no Coservatório de São Paulo, com o propósito de ser professor de piano. Professor desse instrumento no mesmo Conservatório, onde ainda era o titular de História da Música e Estética Musical. Dirigiu o Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo, sendo o responsável pela instituição de vários serviços culturais existentes até hoje.
Em 1938 mudou-se para o Rio de Janeiro para lecionar Estética na Universidade do Distrito Federal.
De muito já vinham suas atividades intelectuais como a de crítico, que lhe granjeou o respeito da intelectualidade brasileira. Foi um dos principais articuladores e organizadores da Semana de Arte Moderna, de 1922, tendo tido participação intensa no evento.
Grande conhecedor do folclore brasileiro, além de pesquisador da cultura indígena, são esses os conhecimentos que lhe valem de matéria-prima para a composição de Macunaíma.

A OBRA


Macunaíma é o resultado de uma visão própria do momento que o Brasil vivia: a negação de nossas tradições literárias, a redescoberta da identidade brasileira em um patamar de extrema transparência e sobretudo sem o maniqueísmo romântico. É com esse intuito que o índio volta à cena. Mas agora o índio "mau selvagem", sem idealizações. Desse primitivismo modernista nasce Macunaíma. Não se estrutura como romance: conflito, desenvolvimento, solução. Por isso, Mário de Andrade o classificou de rapsódia, pois como nas rapsódias é constituído de quadros que se justapõem, sem que um implique o seguinte, a não ser pela necessidade de caracterização das personagens.


PERSONAGENS


Macunaíma é o "herói sem nenhum caráter", por ser herói símbolo, síntese de todos os caracteres brasileiros. Nasce no fundo da mata-virgem (índio), "preto retinto" (negro) e torna-se branco na viagem para o Sul. Nele se concentram a sagacidade, a manha (derrota de Piaimã - o Venceslau Pietro Petra, mas também a tolice, a ingenuidade (os ovos do bugio, o cocô do gambá), a malandragem, a preguiça, a sensualidade (está sempre "brincando"). Torna-se imperador das amazonas por ter brincado com Ci, a mãe do mato, que antes de tornar-se a Beta do Centauro, ainda deu uma muiraquitã para o herói. Esse amuleto vai parar nas mãos do Gigante (Venceslau), que mora em São Paulo, o que obriga Macunaíma a uma prolongada viagem ao Sul. Por fim, sobe para o céu, quando as margens do Uraricoera tornam-se deserto.
Maanape é o irmão mais velho de Macunaíma. É feiticeiro e livra o herói de muitas embrulhadas em que ele se mete.
Jiguê é o outro irmão. Muito ingênuo, primeiro casa com Sofará, com quem Macunaíma gostava de brincar. Casa então com Iriqui, que tem o mesmo destino. Venceslau Pietro Pietra é o Gigante Piaimã, um peruano, rico colecionador de São Paulo, nas mãos de quem a muiraquitã vem parar. É o estrangeiro, o invasor, contra quem Macunaíma terá de demonstrar toda sua esperteza.


ESPAÇO

A ação inicia às margens do Uraricoera, Norte do Brasil, onde nasceu Macunaíma. Mais tarde, o herói e seus dois irmãos empreendem uma viagem para o Sul, atrás da muiraquitã (o amuleto - uma pedra verde em forma de jacaré - presente de Ci). Em São Paulo a ação se desenvolve até a recuperação do amuleto. Os três - Macunaíma, Maanape e Jiguê retornam ao lugar de origem, onde se encerra a história.
Cumpre observar, entretanto, que a noção lógica de espaço é a todo momento rompida, cruzada que é com um espaço mítico - ou mágico - fruto do pensamento indígena. Exemplo disse é o momento em que, fugindo de um cão, Macunaíma vai ao Rio Grande do Sul e volta a São Paulo, correndo a pé, em poucos minutos.


TEMPO

O tempo externo, histórico, de Macunaíma, insere-se no início do século, suas três primeiras décadas. No segundo parágrafo da "Carta pras Icamiabas", o herói, no cabeçalho da carta, anota: "Trinta de Maio de Mil Novecentos e Vinte e Seis..." Outros elementos da história atestam a validade dessa data: a máquina telefone, a máquina automóvel, etc.
O tempo interno, tempo narrativo, corresponde à vida de uma pessoa, do nascimento à idade adulta. Mas isso, apenas de maneira bastante superficial. O primeiro capítulo é do tipo panorama, que leva o herói do nascimento até ele "brincar" pela primeira vez. Nos demais capítulos não há mais "modificação" de sua idade. Aliás, dá-se com o tempo o mesmo que com o espaço: cruzamento constante entre tempo cronológico e tempo mítico - tudo pode acontecer em um segundo.


NARRADOR

O narrador é, em princípio, um narrador onisciente, foco narrativo em 3ª pessoa. Mas não é tão simples assim. E o penúltimo parágrafo do "Epílogo" é o complicador:
"Tudo ele contou pro homem e depois abriu asa rumo de Lisboa. E o homem sou eu, minha gente, e eu fiquei pra vos contar a história. Por isso que vim aqui. Me acocorei em riba destas folhas, catei meus carrapatos, ponteei na violinha e em toque rasgado botei a boca no mundo cantando na fala impura as frases e os casos de Macunaíma, herói de nossa gente."
O narrador só se denuncia no final, para justificar mais uma vez a classificação de rapsódia: ele é um aedo, à maneira dos narradores antigos das rapsódias e das epopéias, mesma função dos cantadores populares, que, nas feiras do Nordeste brasileiro, acompanhando-se de sua viola, narram as histórias com que encantam o imaginário popular.


AÇÃO

Macunaíma, filho de uma tribo que vivia nas margens do Uraricoera (Norte do Brasil), demora seis anos para falar por pura preguiça. Ao abrir a boca pela primeira vez, foi para dizer "Ai, que preguiça". Um dia brinca "na marra" com Ci, a mãe da mata, e torna-se o Imperador das Icamiabas. Antes de se transformar em estrela, Ci lhe dá um amuleto, a muiraquitã. Um dia o herói deixa a muiraquitã no alto de uma árvore e a pedra lhe é roubada. Ao ficar sabendo do destino da pedra, inicia, em companhia dos dois irmãos, uma viagem para o Sul (São Paulo), para resgatar a pedra. Depois de golpes e contragolpes, entre Macunaíma e Venceslau Pietro Pietra, finalmente o herói vence e recupera a muiraquitã. Na viagem de volta, Macunaíma adoece. Quando chegam à aldeia às margens do Uraricoera, não há mais ninguém. É só deserto. Através de uma feitiçaria, ele é transformado na constelação da Ursa Maior.


COMENTÁRIOS

Macunaíma é composto em cima de lendas indígenas, recuperando muito de sua linguagem e de seu modo de pensar.
Como síntese do Brasil, existem expressões das mais diversas regiões do Brasil. São Paulo, Nordeste, extremo sul do Brasil, comparecem com seus falares. Sendo uma radicalização da bandeira modernista, que pregava a aproximação entre linguagem das ruas e linguagem literária, Macunaíma está pontilhada de expressões populares, como: "no outro dia...", "légua e meia", "jacaré ...? Nem ...", "de já-hoje", etc.
O tom geral do texto é de paródia e o melhor exemplo, aquele em que se explicita a intenção, é a "Carta pras Icamiabas". As flexões verbais, o emprego dos pronomes, o vocabulário utilizado, tudo leva um ranço "respeitoso", que lembra a linguagem escrita, "culta", ou seja, extremamente formal, principalmente de documentos oficiais, mas muitas vezes encontrada também em textos jornalísticos.Várias são as passagens irônicas. Uma delas, na qual o narrador ironiza o vezo romântico de fornecer rol de elementos da natureza, com o objetivo de engrandecê-la, o narrador apresenta uma lista de mosquitos: "E eram muitos mosquitos, piuns maruins arurus tatuquiras muriçocas meruanhas mariguis borrachudos varejas, toda essa mosquitada."
Estilo - Seguindo as observações de A Bosi, em sua História Concisa: "À primeira observação, distinguem-se, na obra, três estilos de narrar:

a) um estilo de lenda, épico-lírico, solene:No fundo do mato-virgem nasceu macunaíma, herói de nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite. Houve um momento em que o silêncio foi tão grande escutando o murmurejo do Uraricoera que a índia tapanhumas pariu uma criança feia. Essa criança é que chamaram Macunaíma.b) um estilo de crônica, cômico, despachado, solto:Já na meninice fez coisas de sarapantar. De primeiro passou mais de seis anos não falando. Si o incitavam a falar, exclamava: - ai! Que preguiça!...E não dizia mais nada.c) um estilo de paródia. Mário de Andrade toma o andamento parnasiano típico, anterior a 22, à Coelho Neto e à Rui Barbosa e, nesse código, vaza uma "mensagem" de Macunaíma às Icamiabas:

É São Paulo construída sobre sete colinas, à feição tradicional de Roma, a cidade cesárea, "capita" da Latinidade de que provimos; e beija-lhe os pés a grácil e inquieta linfa do Tietê. As águas são magníficas, os ares tão amenos quanto os de Aquisgrana ou de Anverres, e a área tão a eles igual em salubridade e abundância, que bem se pudera afirmar, ao modo fino dos cronistas, que de três AAA se gera espontaneamente a fauna urbana.
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"Passando abruptamente do primitivo solene à crônica jocosa e desta ao distanciamento da paródia, Mário de Andrade jogou sabiamente com níveis de consciência e de comunicação diversos, justificando plenamente o título de rapsódia, mais do que "romance" que emprestou à obra."
E para terminar, é ainda útil recorrer ao auxílio do professor Alfredo Bosi:
"Em Macunaíma, a mediação entre o material folclórico e o tratamento literário moderna faz-se via Freud e consoante uma corrente de abordagem psicanalítica dos mitos e dos costumes primitivos que as teorias do Inconsciente e da "mentalidade pré-lógica" propiciaram. O protagonista, "herói sem nenhum caráter", é uma espécie de barro vital, ainda amorfo, a que o prazer e o medo vão mostrando os caminhos a seguir, desde o nascimento em plena selva amazônica e as primeiras diabruras glutonas e sensuais, até a chegada à São Paulo moderna em busca do talismã que o gigante Venceslau Pietro Pietra havia furtado."

Batizado de Macunaíma - Tarsila do Amaral - óleo sobre tela - 1956.

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