MINHA PRIMEIRA ANÁLISE-CRÍTICA SOBRE OS ARTISTAS PLÁSTICOS PRESENTES NA SEMANA DE 22
Sérgio Milliet
Sérgio Milliet
Marthe, minha amiga, não sei se você recorda das palavras cruéis que eu tinha outrora para com a arte brasileira, e ainda no ano passado, a propósito da prudência e da frivolidade de nossos artistas.
Agora sou obrigado a desmentir-me e a voltar atrás. Passei a fazer parte do regimento daqueles que ainda acreditam na banalidade dos provérbios, ao assegurar-me da verdade de um deles. Os dias se sucedem... La Palisse não teria melhor dito essa imensa verdade. No entanto, cara amiga, é necessário meditar de vez em quando sobre essa verdade conhecida. Em São Paulo, há apenas um ano, alguns artistas trabalhavam na calma dos ateliês e dos quartos isolados conscientes de seu valor porem certos de serem esmagados pelo grande número de seus adversários no momento em que se ousassem mostrar.
Alguns artistas!
E eis que repentinamente esses artistas concitam outros desconhecidos e à força de coragem e de perseverança conseguem esta coisa surpreendente: dar a São Paulo, a cidade do café, a cidade nouveau riche, saraus, de arte moderna.
E todas as artes estão ali representadas, Marthe: a escultura, pintura, música, literatura e até a arquitetura.
Ah, minha amiga, este país é extraordinário, as artes se desenvolvem com o mesmo vigor e a mesma rapidez que as grandes árvores de troncos torcidos das florestas virgens. E quanto mais coisas eu não lhe diria ainda se não quisesse passar rapidamente em revista esta esplêndida manifestação.
Seria uma inverdade lhe dizer que o público aceitou as teorias que você conhece sobre a pintura, a poesia e a música. Ele vaiou, e mais ainda, cantou, berrou, manifestou-se ao longo do espetáculo. Os estudantes amontoados nas galerias do grande teatro, impediram freqüentemente a platéia de ouvir. Mas é necessário dizer também que esta concordava quase sempre tacitamente com as insanidades vomitadas pela falange acadêmica.
E foi então que se viu homens como Mário de Andrade, Ronald de Carvalho, e outros distinguir-se pela sua coragem tranqüila e pela sua fé.
Foi uma espécie de premiere de Hernani, brilhantemente realizada. Mário de Andrade, o poeta de “Paulicéia Desvairada” e Ronald de Carvalho, o autor de “Epigramas” mostraram-se sublimes. O primeiro, com sua magnífica cabeça calva, explicando sob as vaias e os sarcasmos as teorias da arte moderna e afirmando com uma voz forte e, meio aos gritos “os velhos morrerão, senhores”, o segundo, aristocrata do pensamento, respondendo com humor e educação às pilhérias da assistência.
Entremos juntos no hall do Grande Teatro e admiremos um pouco da exposição.
Eis, da esquerda para a direita, antigo discípulo de Hodler, que nos apresenta telas de um colorido vigoroso e de um simbolismo místico, simples e duro e ingênuo. O melhor exemplo disso é a “Descida da Cruz”. Nas paisagens e nas naturezas mortas essa mesma rudeza de expressão, que é um dos princípios de Holdler. “Paisagem de Espanha” é um belo quadro.
Zina Aita, do Rio de Janeiro, bizarra mais que original, apreciando a cor sobretudo e moderna sobretudo nisso uma vez que ela conservou um certo realismo no desenho que não é de bom quilate.
Algumas telas de interpretações rebuscadas não me fazem mudar de opinião.
Anita Malfatti, vigorosa e audaciosa, e inteligente.
O Homem Amarelo, o Japonês, Paisagem à Beira Mar, são puras obras primas. Seu desenho concentrado e seu colorido sóbrio a tornam o melhor pintor da exposição.
Citemos ainda da mesma artista alguns retratos interessantes e uma “Índia” de sua última fase que assinala a evolução definitiva de Anita Malfatti para uma pintura de interpretação sintética.
Di Cavalcanti, do Rio de Janeiro, cujas últimas obras são muito pessoais e modernas, lembrando algo o método empregado por Frans Masereel em “Souvenirs de Londres”, Masereel que porém não conhecia antes de minha chegada, errou ao expor telas antigas. É claro que eu as aprecio assim mesmo, mas há entre elas duas ou três que são pintura antiga, claro- escuros e telas mais ou menos impressionistas, seja enquanto fatura, como pela própria interpretação do assunto.
Pode-se ainda apreciar seu talento de ilustrador em alguns desenhos de um belo movimento.
Rêgo Monteiro, do Rio, também apresenta números quadros que podem ser divididos em dois grupos: aquele das telas impressionistas e mesmo as telas pontilhistas, entre as quais é preciso notar “Baile do Assírio”, quem interpreta o movimento de uma ronda de máscaras dançando sob serpentinas e confetes. Um turbilhão de cores cujo centro é o ponto luminoso. E aquele das telas cubistas que marca a evolução do pintor no sentido da pintura intelectual.
Ferrignac, com um só quadro, uma natureza morta dadaísta. É a extrema esquerda do movimento paulista.
A escultura, admiravelmente representada pelo gênio Brecheret, de um estilo que lembra Mestrovic (no original Mestrovitch), nos dava a oportunidade de apreciar as estatuetas de Haarberg, um escultor bastante jovem e quem não falta talento.
Brecheret revela-se um grande escultor, um gênio da raça latina, digno de suceder a Rodin e Boerdelli (no original, Bouraine) e também um admirável poeta pela sua extraordinária imaginação. Marthe, eu gostaria de poder lhe mostrar seu monumento às bandeiras que é por assim dizer a epopéia da arte brasileira e o mais belo canto de sua poesia. É o quadro poderoso da conquista do Brasil pelo aventureiro povo paulista, à procura do ouro e dos escravos índios, a ambição desmedida e nostálgica dos descendentes dos gloriosos portugueses da grande época, a necessidade de conquistar e de denominação. Imagine, para traduzir essa grande idéia, um impulso formidável de corpos torcidos, músculos, sofrimentos, desesperos e entusiasmos através da floresta virgem, das febres e as guerras e a natureza hostil. Tudo isso sem uma só frase, um só artifício, sem uma imagem já vista. Imagine tudo isso e você terá uma idéia da arte de Brecheret.
Quanto a arquitetura podemos admirar os templos de Móya e as casas de campo de Przyrembel (no original, Przembel).
Você certamente já ouviu falar de Villa Lobos, minha amiga, pois suas obras foram executadas em Paris com sucesso (ver Nouvelle Revue Musicale). Trata-se de um compositor vagamente enfeudado ao grupo dos “Seis”, porém ainda com alguma coisa de Debussy, assim mesmo o maior músico do Brasil. Naturalmente ele era ainda completamente desconhecido no país dos cafeicultores.
Muito bem executada, suas obras obtiveram uma consagração definitiva da elite e foram estrepitosamente vaiadas pela grande maioria do público.
A notar seu “Trio” (1916), cujo andante é muito pessoal, as “Danças Africanas” (Kankukus e Kankikis) e o “Terceiro Quatuor” (instrumentos de corda-1916) onde o scherzo satírico (pipocas e potocas) é uma pequena maravilha de verve e o adágio um belo trecho.
A música de Villa Lobos é uma das mais preferidas manifestações da alma brasileira. Feita de melancolia e de humor, ela traduz aquilo que caracteriza esse povo jovem vindo de um povo triste. A linha melódica infinitamente variada desconsertou o público. Villa Lobos não desenvolve uma frase. Ele sintetiza e seu espírito plana sobre o mundo das sensações que ele exprime à maneira de um Massereel em pintura.
O público hostil e refratário diante da calma olímpica dos artistas sentiu-se, ao final, perplexo.
Eis ai, minha cara amiga, uma carta um pouco longa. Não quero mais tomar seu tempo por hoje. Assim sendo só falarei da jovem vigorosa literatura brasileira na minha próxima carta.
Beijo suas mãos com ternura
Serge Milliet
Agora sou obrigado a desmentir-me e a voltar atrás. Passei a fazer parte do regimento daqueles que ainda acreditam na banalidade dos provérbios, ao assegurar-me da verdade de um deles. Os dias se sucedem... La Palisse não teria melhor dito essa imensa verdade. No entanto, cara amiga, é necessário meditar de vez em quando sobre essa verdade conhecida. Em São Paulo, há apenas um ano, alguns artistas trabalhavam na calma dos ateliês e dos quartos isolados conscientes de seu valor porem certos de serem esmagados pelo grande número de seus adversários no momento em que se ousassem mostrar.
Alguns artistas!
E eis que repentinamente esses artistas concitam outros desconhecidos e à força de coragem e de perseverança conseguem esta coisa surpreendente: dar a São Paulo, a cidade do café, a cidade nouveau riche, saraus, de arte moderna.
E todas as artes estão ali representadas, Marthe: a escultura, pintura, música, literatura e até a arquitetura.
Ah, minha amiga, este país é extraordinário, as artes se desenvolvem com o mesmo vigor e a mesma rapidez que as grandes árvores de troncos torcidos das florestas virgens. E quanto mais coisas eu não lhe diria ainda se não quisesse passar rapidamente em revista esta esplêndida manifestação.
Seria uma inverdade lhe dizer que o público aceitou as teorias que você conhece sobre a pintura, a poesia e a música. Ele vaiou, e mais ainda, cantou, berrou, manifestou-se ao longo do espetáculo. Os estudantes amontoados nas galerias do grande teatro, impediram freqüentemente a platéia de ouvir. Mas é necessário dizer também que esta concordava quase sempre tacitamente com as insanidades vomitadas pela falange acadêmica.
E foi então que se viu homens como Mário de Andrade, Ronald de Carvalho, e outros distinguir-se pela sua coragem tranqüila e pela sua fé.
Foi uma espécie de premiere de Hernani, brilhantemente realizada. Mário de Andrade, o poeta de “Paulicéia Desvairada” e Ronald de Carvalho, o autor de “Epigramas” mostraram-se sublimes. O primeiro, com sua magnífica cabeça calva, explicando sob as vaias e os sarcasmos as teorias da arte moderna e afirmando com uma voz forte e, meio aos gritos “os velhos morrerão, senhores”, o segundo, aristocrata do pensamento, respondendo com humor e educação às pilhérias da assistência.
Entremos juntos no hall do Grande Teatro e admiremos um pouco da exposição.
Eis, da esquerda para a direita, antigo discípulo de Hodler, que nos apresenta telas de um colorido vigoroso e de um simbolismo místico, simples e duro e ingênuo. O melhor exemplo disso é a “Descida da Cruz”. Nas paisagens e nas naturezas mortas essa mesma rudeza de expressão, que é um dos princípios de Holdler. “Paisagem de Espanha” é um belo quadro.
Zina Aita, do Rio de Janeiro, bizarra mais que original, apreciando a cor sobretudo e moderna sobretudo nisso uma vez que ela conservou um certo realismo no desenho que não é de bom quilate.
Algumas telas de interpretações rebuscadas não me fazem mudar de opinião.
Anita Malfatti, vigorosa e audaciosa, e inteligente.
O Homem Amarelo, o Japonês, Paisagem à Beira Mar, são puras obras primas. Seu desenho concentrado e seu colorido sóbrio a tornam o melhor pintor da exposição.
Citemos ainda da mesma artista alguns retratos interessantes e uma “Índia” de sua última fase que assinala a evolução definitiva de Anita Malfatti para uma pintura de interpretação sintética.
Di Cavalcanti, do Rio de Janeiro, cujas últimas obras são muito pessoais e modernas, lembrando algo o método empregado por Frans Masereel em “Souvenirs de Londres”, Masereel que porém não conhecia antes de minha chegada, errou ao expor telas antigas. É claro que eu as aprecio assim mesmo, mas há entre elas duas ou três que são pintura antiga, claro- escuros e telas mais ou menos impressionistas, seja enquanto fatura, como pela própria interpretação do assunto.
Pode-se ainda apreciar seu talento de ilustrador em alguns desenhos de um belo movimento.
Rêgo Monteiro, do Rio, também apresenta números quadros que podem ser divididos em dois grupos: aquele das telas impressionistas e mesmo as telas pontilhistas, entre as quais é preciso notar “Baile do Assírio”, quem interpreta o movimento de uma ronda de máscaras dançando sob serpentinas e confetes. Um turbilhão de cores cujo centro é o ponto luminoso. E aquele das telas cubistas que marca a evolução do pintor no sentido da pintura intelectual.
Ferrignac, com um só quadro, uma natureza morta dadaísta. É a extrema esquerda do movimento paulista.
A escultura, admiravelmente representada pelo gênio Brecheret, de um estilo que lembra Mestrovic (no original Mestrovitch), nos dava a oportunidade de apreciar as estatuetas de Haarberg, um escultor bastante jovem e quem não falta talento.
Brecheret revela-se um grande escultor, um gênio da raça latina, digno de suceder a Rodin e Boerdelli (no original, Bouraine) e também um admirável poeta pela sua extraordinária imaginação. Marthe, eu gostaria de poder lhe mostrar seu monumento às bandeiras que é por assim dizer a epopéia da arte brasileira e o mais belo canto de sua poesia. É o quadro poderoso da conquista do Brasil pelo aventureiro povo paulista, à procura do ouro e dos escravos índios, a ambição desmedida e nostálgica dos descendentes dos gloriosos portugueses da grande época, a necessidade de conquistar e de denominação. Imagine, para traduzir essa grande idéia, um impulso formidável de corpos torcidos, músculos, sofrimentos, desesperos e entusiasmos através da floresta virgem, das febres e as guerras e a natureza hostil. Tudo isso sem uma só frase, um só artifício, sem uma imagem já vista. Imagine tudo isso e você terá uma idéia da arte de Brecheret.
Quanto a arquitetura podemos admirar os templos de Móya e as casas de campo de Przyrembel (no original, Przembel).
Você certamente já ouviu falar de Villa Lobos, minha amiga, pois suas obras foram executadas em Paris com sucesso (ver Nouvelle Revue Musicale). Trata-se de um compositor vagamente enfeudado ao grupo dos “Seis”, porém ainda com alguma coisa de Debussy, assim mesmo o maior músico do Brasil. Naturalmente ele era ainda completamente desconhecido no país dos cafeicultores.
Muito bem executada, suas obras obtiveram uma consagração definitiva da elite e foram estrepitosamente vaiadas pela grande maioria do público.
A notar seu “Trio” (1916), cujo andante é muito pessoal, as “Danças Africanas” (Kankukus e Kankikis) e o “Terceiro Quatuor” (instrumentos de corda-1916) onde o scherzo satírico (pipocas e potocas) é uma pequena maravilha de verve e o adágio um belo trecho.
A música de Villa Lobos é uma das mais preferidas manifestações da alma brasileira. Feita de melancolia e de humor, ela traduz aquilo que caracteriza esse povo jovem vindo de um povo triste. A linha melódica infinitamente variada desconsertou o público. Villa Lobos não desenvolve uma frase. Ele sintetiza e seu espírito plana sobre o mundo das sensações que ele exprime à maneira de um Massereel em pintura.
O público hostil e refratário diante da calma olímpica dos artistas sentiu-se, ao final, perplexo.
Eis ai, minha cara amiga, uma carta um pouco longa. Não quero mais tomar seu tempo por hoje. Assim sendo só falarei da jovem vigorosa literatura brasileira na minha próxima carta.
Beijo suas mãos com ternura
Serge Milliet
(Artigo publicado na revista Lumiere de Antuérpia, nº 7 a 15 de abril de 1922. Tradução de Walter Zanini e Joset Balsa).
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A PRIMEIRA CRÍTICA AOS PINTORES DA SEMANA, FEITA POR SÉRGIO MILLIET, É AVALIADA POR WALTER ZANINI.
SÉRGIO MILLIET E A SEMANA
A pesquisa das artes plásticas na Semana de Arte Moderna em pouco ou nada enriqueceu nos últimos anos, a matéria já largamente conhecida. Não são raras entretanto as interrogações que permanece no ar, motivadas quer pela incipiente relação das obras no catálogo, quer, pela incerteza do comparecimento de artistas mencionados em notícias dos jornais que cobriam o evento e a dispersão de muitos dos trabalhos expostos. Tais dificuldades sempre criaram embaraço para as tentativas de reconstituição completa da primeira manifestação coletiva de arte moderna realizada no País. É óbvio, porém, que o que se conseguiu reunir em torno da Semana tem sido mais do que suficiente para a sua avaliação. O que ainda se puder acrescentar certamente não será de maior monta.
Isto não significa que a recuperação de algum documento não possa contribuir com novos esclarecimentos sobre a natureza do envio dos artistas. A esse respeito, o artigo “Une semaine d’art moderne à São Paulo”, se Sérgio Milliet, inserido na revista “Lumiére”, de Antuérpia”, a 15 de abril de 1922, é exemplar trazendo algumas informações (ao lado da apreciação crítica) que são tanto mais valiosas por emanarem de uma testemunha ocular da mostra.
Anteriormente já havíamos citado o artigo e incluído um trecho no catálogo da exposição de Vicente do Rêgo Monteiro (MAC-USP, nov-dez. 1971). Cecília de Lara, por sua vez, reportou-se a ele em breve comentário no artigo “Klaxon e Lumiere”, publicado na revista “Caravelle”, nº 25, de 1975 (Faculté des Lettres de Toulouse). Mas é esta a primeira vez que se dá ampla divulgação ao mesmo.
Escrevendo em francês, como o fazia então, e assinando Serge Milliet, o crítico endereça o artigo, em forma epistolar, a “Marthe, mon amie”. Confessa-se impressionado com a súbita melhora da arte no Brasil, o que o obriga a desmentir sua própria opinião anterior, quando manifestava seu desagrado diante da “prudência” e da “frivolidade” dos artistas locais. Ele acrescenta: “Em São Paulo, há apenas um ano, alguns artistas trabalhavam na calma dos ateliês e quartos isolados, conscientes de seu valor, porém certos de serem esmagados pelo grande número de seus adversários no momento em que ousassem mostrar”.
Entusiasmado, Milliet diz que de repente esses artistas concitam outros seus colegas desconhecidos e que “à força de coragem e de perseverança conseguem esta coisa surpreendente: dar a São Paulo, a cidade do café, a cidade nouveau riche, saraus de arte moderna. Vai ainda mais longe ao afirmar que “este país é extraordinário” e que “as artes desenvolvem com mesmo vigor e a mesma rapidez que as grandes árvores de troncos torcidos das florestas virgens”.
O relato a seguir faz os acontecimentos da Semana, aqui traduzido e reproduzido na íntegra, é rápido e objetivo e confirma o que sabemos por outras fontes. Menciona a reação ruidosa do público e transcreve palavras ditas por Mário de Andrade à platéia enfurecida: “os velhos morrerão, senhores”, contrastantes com a forma polida das respostas do aristocrata Ronald de Carvalho. Mais adiante ele dirá o melhor possível da música de Villa Lobos (“feita de melancolia e humor”), tratando do compositor “vagamente enfeudado ao grupo dos Seis”, em todo o trecho final de seu escrito. Mas no cerne do texto está a exposição de artes visuais, o que aqui nos interessa mais.
Das observações que alinhava, para nós talvez as mais sugestivas sejam aquelas sobre Di Cavalcanti, uma vez que lança uma nova luz a respeito do pintor num momento de sérias vacilações, às vésperas da Semana. O paralelo que se traça entre ele e o belga Franz Masereel, artista de uma composição organizada por robusto traços expressionistas, é significativo. Diz Milliet: “Di Cavalcanti, do Rio de Janeiro, cujas últimas obras são muitos pessoais e modernas, lembrando algo do método empregado por Frans Masereel em “Souvernirs de Londres”, Masereel que entretanto ele não conhecia antes de minha chegada, errou ao expor telas antigas”. Declara apreciá-las, mesmo assim colocando dúvidas em “duas ou três que são pintura antiga, claro-escuros e telas mais ou menos impressionistas, seja enquanto fatura como pela própria interpretação do assunto”. Louva-o ainda como ilustrador “de alguns desenhos de um belo movimento”.
Por entre a audácia de expor, eis pois o receio de um dos principais protagonistas da Semana em mostrar obras mais avançadas. Sabemos, que a presença de Di Cavalcanti não chegou a ter a forma de pequena retrospectiva, como ocorreu com a de Anita Malfatti. Suas obras eram em técnicas várias e uma produção mais recente demonstrava alguma influência do cubismo e do futurismo, como se constata na ilustração que preparou para o rosto do catálogo (apresentado com planos de fundo arredondados que lembram o quadro “O Beijo” do MAC-USP). O penumbrismo das figuras espectrais era algo do passado mas ele o acabou levando para a exposição. Seus últimos trabalhos, os que Milliet aproxima de Masereel - e que certamente trariam maior força à sua participação – ficaram entretanto lamentavelmente de fora.
O texto de “Lumiere” é quase sempre encomiástico. Quando trata de Anita, a afirma “vigorosa e ousada, e inteligente”. Considera “O Homem Amarelo”, “O Japonês” e “Paisagem à beira-mar” como obras-primas. “Seu desenho concentrado e seu colorido sóbrio a tornam o melhor pintor da exposição”. Milliet cita “Indienne” como um exemplo da última fase da precursora (influenciada pelo ideário nacionalista) “que assinala a evolução definitiva de Anita Malfatti para uma pintura de interpretação sintética”. Em verdade, Anita estava também presa às vacilações, embora seus novos esforços em 1921. Sua presença na Semana era um rebatimento da mostra de 1917-18 acrescentada de peças recentes em que se diluíra consideravelmente a força do seu expressionismo. Não é aqui o lugar para outras verificações do declínio de Anita. Sérgio Milliet via uma evolução na obra apontada (desconhecida, mas que podemos aproximar de outras com o mesmo tema), quando o certo seria falar de regressão.
Outro comentário é aquele a respeito, de Vicente do Rêgo Monteiro. Milliet confirmou na Semana a presença de “telas cubistas que marcam a evolução do pintor no sentido da pintura intelectual”. Essas obras, as últimas relacionadas no catálogo de 1922, encontram-se dispersas ainda hoje mas o testemunho explícito do crítico é suficiente para confirmar uma preocupação estética que penetrava o Brasil também pelo interesse do pintor pernambucano. Nota-se a insistência nessa novidade do artista em Ronald de Carvalho que se referiu aos “cubismos da Semana” em carta a René Thiollier. VRM, cujo desenvolvimento revelaria uma grande organicidade de linguagem, estava a um passo das soluções da fase parisiense dos anos 20, como nos damos conta vendo suas “lendas brasileiras” e a série de retratos da época, todos de uma estrutura caracterizada pelo alongamento e a depuração das formas, inclinadas à sugestão do relevo.
Sérgio Milliet dedica linha muito elogiosas a Brecheret, fazendo assim coro com o que do escultor pensam os demais modernistas (e mesmo não modernistas). Acredita-o um sucessor de Rodim ou de Bourdelle, mas não se detém ao exame das peças expostas na SAM, ao deslocar sua atenção para o projeto do “Monumento às Bandeiras” que descreve com força poética.
As demais apreciações dizem respeito a outras participações conhecidas, não satisfazendo a expectativa dos que ainda esperam a confirmação da presença de algum nome na SAM. Registra longamente a participação de John Graz, com suas “telas de um colorido vigoroso e de um simbolismo místico, simples e duro e ingênuo”, considerando “A descida da cruz” (que não consta no catálogo) como a melhor de suas obras expostas. Apesar de conhecer de há muito o pintor de Genebra - cidade onde Sérgio estudara - ele o diz “antigo discípulo de Holdler”. Graz, contudo, nunca freqüentara o mestre expressionista, embora revele sua influência.
Sua apreciação é menos positiva quanto a Zina Aita, que se colocava entre os brasileiros já experientes da Europa, antes de 1922, considerando-a “bizarra mais que original” - no que está certo. Há ainda um lugar comum sobre Haarberg, “um escultor bastante jovem e a quem não falta talento”. Cita finalmente Ferrignac que apresenta “natureza-morta dadaísta”, situando-a na “extrema esquerda do movimento paulista”. Pelo que se conhece de Ferrignac nada faz crer que o quadro “Natureza dadaísta”, exibido na Semana, tenha algo a ver com a natureza do título. A afirmação de Milliet, esclarece que se trata de uma “natureza-morta”, informação a que acrescenta a frase acima, aliás de difícil entendimento. Não há outras referências a artistas, salvo aquelas sobre os arquitetos, tratados laconicamente: “Quanto à arquitetura, pudemos admirar os templos de Moya e as casas de campo de Przyrembel (ortografia corrigida)”.
O tom descritivo, leve e laudatório permeia todo o comentário, mostrando o jovem crítico em suas primeiras tentativas de abordagem de artistas que se filiam às correntes modernas e às quais continuará a dar seu apoio no longo futuro. Também a sensibilidade musical aparece, nas considerações das peças de Villa Lobos. Serge Milliet transmitia assim sua mensagem sobre a SAM ao público europeu através de uma revista de cultura ligada aos modernistas. Nela publicaria novo texto, meses depois, desta vez sobre a literatura moderna no Brasil.
(Walter Zanini – Artigo publicado no Suplemento “Cultura”, de O Estado de S. Paulo – Pág. 6 – Ano II – N.º 88)
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