GUILHERME DE ALMEIDA:
ENTREVISTA SOBRE HAIKAI
Guilherme de Almeida - Foto Reprodução |
Entrevista com GUILHERME DE ALMEIDA, concedida a Genésio Pereira
Filho, publicada na "Gazeta Magazine"
de 29/09/1941(*). Aqui no Blog RETALHOS
você poderá também acompanhar outro texto sobre Haikai de Guilherme de Almeida, clicando no link:
Genésio - Os haikai - usamos o plural
porque o singular incorre num cacófato.
Guilherme - Criação
do século XVII, de Bashô, que era uma poeta boêmio, de vida inconstante e cheia
de altos e baixos. Fez escola. É poesia essencialmente sintética, de dezessete
sílabas, muito popular no Japão. A poesia mais popular, porém, é a
"tanka", de trinta e uma sílabas. Existem também o "dodoitsu"
e o "jintaishi", este o verso livre nosso. De todas estas formas
poéticas, a mais interessante porque mais rigorosa, a que mais disciplina
exige, é o haikai; em primeiro lugar por ser uma síntese; tem apenas dezessete
silabas; e em segundo lugar, pela sua construção forçada em três versos, um de
cinco silabas, outro de sete e um último também de cinco.
Genésio - E o haikai como poesia "do momento"?
Guilherme - Além
das limitações de que falei, uma outra torna o haikai dificílimo e, portanto,
interessantíssimo: é a de ser uma "poesia de estação" ou
"saisonnière". Tem que se limitar a impressões efêmeras, do momento
que passa. Pode-se mesmo dizer que somente existem quatro espécies de haikai:
de primavera, de verão, de outono e de inverno.
Genésio - O amor não tem participação nessa poesia?
Guilherme -
Absolutamente. O elemento amor não entra nem pode entrar no haikai. Ele se
inspira exclusivamente no aspecto da terra em cada uma dessas fases do ano.
Esses "motivos" de estação, quer dizer, a razão de ser poética do
haikai, chama-se em japonês "kilai" (Nota do Editor: corruptela de
"kidai").
Genésio - O conceito de haikai pode ser contido numa definição?
Guilherme - Sim. E
a melhor definição, contendo todos os elementos, é dos próprios japoneses:
"o haikai é a anotação poética e sincera de um momento de elite".
Note bem: anotação breve e poética. E pela sua qualidade de ser poesia
espiritual, sincera, não pode deixar de ser feita no momento: no verão não se
faz um haikai da primavera. Além do mais, é de um momento de elite. Cita-se
como exemplo perfeito de haikai um de Bashô:
No tanque morto
há o ruído de uma rã
há o ruído de uma rã
que mergulha".
Esse haikai tem o título de "Solidão" e o título no haikai é
como o verbete num dicionário: o texto definirá o título.
Genésio - O haikai exige do próprio leitor um alto senso poético, segundo
creio. Em caso contrário jamais poderá penetrar a essência dessa poesia. Qual
sua opinião?
Guilherme - Exatamente. O haikai
citado é um exemplo. Que relação haverá entre uma rã que mergulha num tanque
morto com a solidão? Entretanto, acho que não há definição mais perfeita de
solidão do que a que se contém nesse haikai. Veja-se mentalmente o desenho:
numa água estagnada - tanque morto - a rã que mergulha abrindo em torno dela
círculos concêntricos que se prolongam indefinidamente até às margens... Ora,
não há nada mais "sozinho" no mundo do que o centro de uma
circunferência; porque ele é único. A circunferência só pode ter um centro que
só pode estar equidistante de todo o ponto da circunferência.
Genésio - O mesmo modo, para produzir o haikai há de exigir-se muitas
qualidades?
Guilherme - Não só
qualidades como é preciso, naturalmente, para produzir o haikai, uma grande
iniciação. Eu a tive aqui em S. Paulo, em 37, quando fui conduzido pelo então
cônsul do Japão em S. Paulo e poeta distintíssimo, Kozo Itigé, ao Clube Japonês
cuja sede era na rua da Liberdade. Nesse clube realizavam-se verdadeiros
"jogos florais". Doze poetas reunidos em torno de uma mesa, na
terceira quarta-feira de cada mês, apresentavam cada um o seu haikai sobre um
tema sorteado com um mês de antecedência. Esses haikai eram postos em concurso,
sendo premiado o melhor. Lembro-me de que nessa reunião em que estive o tema
dado anteriormente era este: "Brisa de primavera". Ouvi haikai
interessantíssimos apresentados pelos poetas japoneses residentes em S. Paulo:
empregados no comércio uns, pequenos lavradores nos arredores da Capital
outros, gente humilde mas de uma invejável cultura. Aliás, no Japão, a poesia
quase que é obrigatória para todas as classes... As gueixas do Yoshiwara são
todas poetisas de valor... Traduzi mesmo várias poesias dessas mulheres, como
"Canções de Gueixas", que figuram no meu livro "Acaso". Por
exemplo: "Esconderijo".
"Nada de mágoas, nem queixumes!
Escondo-me na minha felicidade
como os vaga-lumes
que, quando querem se ocultar,
buscam a claridade
de um raio de luar..."
Escondo-me na minha felicidade
como os vaga-lumes
que, quando querem se ocultar,
buscam a claridade
de um raio de luar..."
Genésio - E a transplantação para o ocidente?
Guilherme - Quem
revelou autorizadamente o haikai no ocidente foi Georges Boneau. A forma
poética japonesa fez furor. Poetas franceses, ingleses, alemães,
norte-americanos, puseram-se a fazer haikai. Mas, sem a rígida disciplina
nipônica, mais ou menos ao acaso. Foi diante disso que eu tive a ideia nesse
ano de 1937 de tentar uma transplantação rigorosa, submetida à disciplina
rígida, do haikai para o português. Descobri que os dois metros - de cinco e de
sete silabas - eram familiares aos nossos poetas: o de cinco o metro habitual
das cantigas infantis, de roda ou de ninar. Por exemplo: "Tutu
Maramoa", e o de sete, o verso essencialmente popular, das trovas ou
redondilhas. Note-se que a métrica japonesa corresponde exatamente à nossa,
pois é também silábica. O japonês não rima, não conhece a rima. Mas usa e abusa
de aliterações e onomatopeias.
Genésio - E quais as regras que estipulou para a sua transplantação?
Guilherme - Na
minha fórmula de haikai, entendi de conservar a rima, pois que é uma riqueza
embelezadora da nossa poesia; é a "única corda que nós acrescentamos à
lira dos gregos, entre os latinos". Não temos o direito de abrir mão dessa
conquista e assim construo o haikai da seguinte maneira: um verso de cinco
sílabas, outro de sete e um terceiro de cinco. Os de cinco rimando entre si e o
de sete com uma rima interna: a segunda sílaba rimando com a sétima.
Outubro
"No fim da alameda
há raios e papagaios
de papel de seda".
há raios e papagaios
de papel de seda".
(rima:
alameda com "seda" e "raios" com "papagaios")
Genésio - Ultimamente li um livro de haikai, em que entra o lirismo. Um livro
todo de haikai. O que pensa?
Guilherme -
Escrevi o meu primeiro haikai no dia 13 de agosto de 1937 e até hoje, 13 de
maio de 1941, só consegui fazer quarenta e três haikai. É pouco, mas é assim...
Exuberante poeta nacional, em uma semana, publicou trezentos e cinquenta
haikai!!... (ponha assim mesmo, dois pontos de admiração e reticência...).
Duvido que essas composições sejam "anotações poéticas e sinceras de
momentos de elite"... E por falar em momento de elite, tenho que acreditar
nele. É que ele tem que ser aproveitado no instante mesmo a sua sinceridade.
Cito um caso que se passou comigo mesmo. Em março de 1938, vi uma quaresmeira,
florida, maravilhosa. Era à tardinha, a luz já oblíqua do quase outono faz
ajoelhar-se aos pés da árvore a sua sombra. Lembrei-me das imagens de quaresma
- vestidas de roxo nas igrejas. O haikai ocorreu-me incontinente. Eu estava num
ônibus; ia construindo mentalmente, improvisando, pois que o haikai é sempre
improvisado. Foi quando um conhecido, um amigo - antes um inimigo - isto é, o
homem que explica, cortou-me o pensamento. Apontou-me a árvore, comentando a
sua beleza e dando-lhe o nome técnico, botânico da quaresmeira. Quando cheguei
em casa, à noite, quis refazer o haikai. Inútil. Por mais de três horas nesse
afã, nada consegui. Saiu um outro haikai, inspirado numa estrelinha que, pela
minha janela eu avistava. Estava cochilando e esse movimento de pender e levantar
a cabeça, de abrir e fechar os olhos... de "piscar"...
"pescar"...
"Cochilo. Na linha
eu ponho a isca de um sonho.
Pesco uma estrelinha".
eu ponho a isca de um sonho.
Pesco uma estrelinha".
O
título desse haikai é "Pescaria".
Genésio - Falamos atrás sobre a iniciação necessária ao cultor do haikai. Um
exemplo?
Guilherme -
Perguntaram-me no Clube, para uma resposta em dez minutos: Por que a Primavera
é sono?
Ora, a Primavera é a estação das flores. Tudo desperta alegremente,
festivamente... Deveria ser sinônimo de vida ativa; mas de sono...
Mas consegui a resposta: a Primavera é sono porque a flor é o berço onde
dorme o fruto!
Genésio - Sendo poesia de estação, o haikai será objetivo?
Guilherme - Justamente. Essa
palavra vem a calhar, respondeu
o autor de "Acaso". O haikai é
eminentemente objetivo, acrescentou Guilherme de Almeida, ao mesmo tempo
em que púnhamos um ponto final à presente entrevista.
ALGUNS
HAIKAIS DE
GUILHERME DE ALMEIDA
Borboleta
anil
que
um loiro alfinete de oiro
espeta
em abril.
HISTÓRIAS
DE ALGUMAS VIDAS
Noite.
Um silvo no ar.
Ninguém
na estação. E o trem
passa
sem parar.
O POETA
Caçador
de estrelas.
Chorou:
seu olhar voltou
com
tantas! Vem vê-las!
NÓS DOIS
Chão
humilde. Então,
riscou-o
a sombra de um vôo.
“Sou
céu!” disse o chão.
VELHICE
Uma
folha morta.
Um
galho do céu grisalho.
Fecho
a minha porta.
Cessou
o aguaceiro.
Há
bolhas novas nas folhas
do
velho salgueiro.
-x-x-x-x-x-x-
(*) Essa
mesma entrevista foi reproduzida no boletim "Imprensa Paulista",
órgão informativo da Associação Paulista de Imprensa, número 41, de
julho/dezembro de 1980.
FONTES PESQUISADAS:
- http://www.kakinet.com/caqui/gaen.htm - Almeida, Guilherme de. Poesia Vária. Ed. Cultrix, São Paulo, sd;
- Barros, Frederico Ozanam P. de Barros. Guilherme de Almeida - Literatura Comentada – Ed. Abril, São Paulo, 1982.
Veja ainda outras matérias sobre
Guilherme de Almeida aqui no RETALHOS, clicando nos links abaixo:
http://literalmeida.blogspot.com.br/2009/07/revolucao-constitucionalista-e.html
http://literalmeida.blogspot.com.br/2009/07/guilherme-de-almeida-o-literato.html
http://literalmeida.blogspot.com.br/2009/07/guilherme-de-almeida-e-o-discurso-beira.html
(Luiz de Almeida)