sábado, 6 de junho de 2009

MARCO ZERO DE OSWALD DE ANDRADE

LÚCIO EMÍLIO:
O
“MARCO ZERO”
E O
“BECO DO ESCARRO”

Não conheço o Lúcio Emílio, 35 anos, que não é do Espírito Santo e sim natural de Bom Despacho, Minas Gerais, município conhecido como: “Cidade Sorriso”. No final do mês passado, ao abrir minha caixa de e-mails (literalmeida@...), dentre muitos encontrei um do Lúcio Emílio do Espírito Santo Júnior. “Té intão”, como diz o caipira, meu contato com ele era somente através do seu Blog “Penetralia” (link no final do texto) – e qual não foi minha satisfação ao receber dele um texto para postar aqui no Retalhos. E não é um “textinho” qualquer, como poderão verificar logo abaixo. Já havia lido um texto do Lúcio no Cronópios (www.cronopios.com.br), cujo título é: “Decifra-me ou Devoro-te: Fragmentos inéditos de O Beco do Escarro”, que até copiei para o meu acervo. O Lúcio não é bom: é ótimo. O “Retalhos” tem me presenteado com grandes contatos, ou melhor, com ilustres pessoas do meio literário: escritores, jornalistas, poetas, pesquisadores, ensaístas, professores, mestres, universitários, como também uma gama enorme de pessoas amantes da literatura e também das artes plásticas. Lúcio Emílio, da “Cidade Sorriso”, é um deles.
O texto enviado pelo Lúcio, postado na sequência, é um espetáculo. Com sabedoria e até um pouco do estilo sacana oswaldiano, ele ensaia suas ponderações a respeito do “Marco Zero”, de autoria do Oswald de Andrade, que segundo Mário da Silva Brito, na apresentação do “Obras Completas-4: Chão – Marco Zero -2”, 2ª edição pela Civilização Brasileira, Rio – 1974, diz:

- “(...). Não será ousadia afirmar-se que Marco Zero é o único romance paulista que se arrisca a abranger toda a realidade bandeirante representada por toda a sua gente, por todas as suas castas e camadas. A Revolução Melancólica quanto Chão fixam todo um complexo agrupamento social emaranhado em complexos problemas que se desenvolvem em inúmeros cenários. Complexo mundo que Oswald apreende em linguagem trabalhada, em flashes ofuscantes, em frases iluminadoras ou em frases que transcrevem a fala dos seus múltiplos personagens. (...). Todo esse levantamento sócio-econômico, político e cultural quer retratar, como repara Sérgio Milliet, “a transformação de uma sociedade latifundiária semifeudal em uma sociedade pré-industrial, graças não só à imigração intensa e à subdivisão da propriedade, mas, ainda, às crises do capitalismo mundial e aos efeitos das guerras internacionais”. Marco Zero é um verdadeiro comício de idéias. Participa, como queria Oswald, do debate público. Permanece atual. Parece mesmo um caderno de apontamentos, um rascunho dos impasses que ainda não vencemos. Com o correr dos anos, tornou-se um romance histórico, no melhor sentido da palavra”.

Assim, sem mais nada a dizer, o melhor mesmo é degustar o texto do Lúcio Emílio.

(Luiz de Almeida)

-0-0-0-0-0-

Marco Zero I, II, III:
de 1929 a 2009

Lúcio Emílio do Espírito Santo Júnior(*)


Oswald de Andrade
(foto reprodução)
O assunto desse artigo deveria ser a reimpressão que a editora Globo fez de Marco Zero I e II, mas vou tratar do romance em si, pois há coisas que precisam ser ditas a respeito dele. Quando iniciei a pesquisa sobre o romance Marco Zero, logo verifiquei o quanto, com poucas exceções, a bibliografia a respeito é escassa e falha, embora os dois MZ constituam o mais volumoso romance escrito por Oswald de Andrade. Quando se fala em Marco Zero, com poucas exceções, repetem-se, com nova teorização, alguns artigos (cheios de juízos negativos, a meu ver equivocados) do jovem Candido. E, se os dois volumes editados de MZ permaneceram pouco estudados, os fragmentos dos romances posteriores aos dois romances publicados (Beco do Escarro, Presença do Mar, Os Caminhos de Hollywood) estão na obscuridade. Nada encontrei de específico a esse respeito e fiz um artigo sobre alguns deles (publicado em setembro do ano passado e também acessível na revista Cronópios). No presente artigo, festejo a reedição de MZ e comento fragmentos dos romances que sairiam a seguir, mas que foram apenas esboçados.
Eis que a editora Globo relança Marco Zero, em setembro de 2008, numa edição revista. O romance tem como personagens militantes marxistas (Fabrício Rioja, Maria Parede) e um anarquista (Paco Alvaredo), trata da revolução de 32 e emerge estranhamente atual. A “guerra santa do café” foi um conflito originado basicamente por um “anti-bailout” (“anti-resgate”): tendo subido ao poder contra a vontade da oligarquia paulista, Vargas recusou-se a ajudar os cafeicultores a pagarem as dívidas originadas da crise de 1929, deixando o estado à beira do colapso econômico. Em plena Grande Depressão, as elites paulistas organizaram uma insurreição armada para tomar o poder, gerando o mais grave conflito armado ocorrido no País no século passado. Esse é o pano de fundo histórico em que se desenrolou a narrativa de Marco Zero.
Aqui não vou tratar dos fragmentos isolados, mas buscarei relacioná-los com os textos já publicados, conferindo-lhes sentido. Para mim, Marco Zero é um romance que mistura experimentalismo formal com engajamento social. Não podia ser entendido na década de 40, pois o melhor código para entendê-lo, o estruturalismo, só surgiu nos anos 60. E Marco Zero, para mim, tem tudo a ver com Miramar e Serafim, tem uma técnica narrativa nada tradicional, que exige que o leitor releia o livro e confira sentido à narrativa. É também um romance antropofágico: é uma antropofagia comunista que tem humor, paródia, trocadilho. E, se tem comunismo, também tem anarquismo, integralismo, imagens Kitsch, gays e lésbicas: é um caldeirão onde Oswald misturou elementos díspares e que gritam de estar juntos, com a intenção mesmo de sintetizar, causar choques para que das contradições surgissem sínteses.
A grande dica para o leitor é: nesse romance sem protagonista aparente, basta acompanhar o jovem João Lucas Klag Formoso. O romance, antes cacofônico, orquestra-se harmonicamente a partir daí.

Oswald de Andrade
(Di Cavalcanti)

ESCREVENDO

O

MARCO ZERO Zero III:

ESQUEMA DO

"BECO DO ESCARRO"

O Beco do Escarro teria duas epígrafes: uma de José Bonifácio, patriarca da independência: “minha bestial província” e outra de Chão: “os homens ali eram escarros cuspidos dos arranha-céus”. Ambos são claramente críticos à sociedade paulista dos anos 30, uma sociedade ainda provinciana onde se travava uma luta bruta por dinheiro e aumentavam o número de pessoas arruinadas e traumatizadas pelo contraste entre a pobreza e a riqueza dos anos anteriores a 29. O Beco do Escarro era o lugar onde se encontravam os perdedores do mundo financeiro paulista em Marco Zero II, Chão: loucos, bêbados, prostitutas, homossexuais, pessoas que tinham perdido tudo na crise, miseráveis. Lindáurea Beato, cunhada de Jango e irmã do afeminado padre Beato, oriunda de uma família pobre e desagregada, viera do meio rural para trabalhar nesse beco sórdido do interior de São Paulo, enquanto Eufrásia, ex-namorada de Jango, decaiu para prostituta. Lindáurea não aceitou destino semelhante e suicidou-se. Beco do Escarro se abriria com esse suicídio, símbolo de um lugar de perdedores e passagem ilustrativa da “devoração universal” pela qual passa o mundo. O esquema do Beco do Escarro, conforme as anotações de Oswald, foi o seguinte:

1) Muralha queimada (Aliança Libertadora – 3º. Regimento). O suicídio de Lindáurea. A sombra amarela (Lírio). Revista do Brasil.
2) Hospedaria do Piolho Vermelho (junho de 35 às vizinhanças do golpe de 37)
3) Retiro Feliz
4) Os planadores
5) Natal no arranha-céu
6) Noturno em miséria maior
7) (ANDRADE, 1947).

É significativa, especialmente, a menção à “Hospedaria do Piolho Vermelho”. Oswald, em um bilhete endereçado a Paulo Emílio Salles Gomes, chamou de “piolhos da revolução” os esquerdistas equivocados. No caso, estava rebatendo as críticas de Paulo Emílio a seu teatro. Não por acaso, o período enfocado é justamente o da revolução comunista derrotada em 35. Suponho que Oswald queria aproximar o maior equívoco político do partido comunista até então (levante fracassado) com determinadas críticas injustas que ele recebeu.
Pelo que está indicado acima, provavelmente queria encaixar em Beco do Escarro o conto Sombra Amarela, dedicado a Orson Welles e publicado separadamente na Revista do Brasil, terceira fase, em março de 1942. O lugar seria o capítulo de abertura (Muralha Queimada). Há uma indicação citando o personagem Lírio de Piratininga, farmacêutico negro intelectualizado e inimigo dos japoneses na imprensa do interior paulista, possivelmente relacionado a seu conteúdo.
O último capítulo de Chão exibiu Lírio aproximando-se do partido comunista, após uma participação desastrada do personagem na revolução de 32. Há, nessa altura, também uma nota de 29 de janeiro de 1948 que diz: “je n´atteint pas les sommets” (“Eu não espero mais as glórias”). É possível que Oswald anotava material biográfico referente ao período que vivia para transformá-lo em literatura: todo artista maduro, se realizou algo de importância, espera glórias no final da carreira: reconhecimento e homenagens, reedição da obra, adaptações de seus livros para rádio e televisão, manifestações públicas de apreço por parte de escritores mais jovens. Nada disso aconteceu no final da carreira de Oswald. Quem sabe ele estivesse pensando em denunciar os equívocos da esquerda ao tratar da vanguarda e da arte moderna. Se, em Marco Zero I e II o partido comunista brasileiro era criticado através das falas do anarquista Paco Alvaredo, em Beco do Escarro essa crítica ia ser ainda mais incisiva e direta.
Mas o que de fato foi redigido para o capítulo Muralha Queimada foi uma breve passagem protagonizada pela camponesa masculinizada e rebelde, antes ligada ao PCB, Miguelona Senofim, num fórum de São Paulo. Ela lutava ao mesmo tempo contra a espoliação do pai de Jango, o filósofo Major Formoso, assim como contra a atitude de sua irmã ambiciosa, D. Europa.
A maior revelação a respeito de Miguelona em Beco do Escarro é o fato de que foi Miguelona e não a violência dos latifundiários a causa do enforcamento de Maria Pedrão, esposa do posseiro apresentado na luta pela terra no início de Revolução Melancólica. Maria Pedrão simbolizara para Jango, no final de Chão, juntamente com Eufrásia Beato, as duas mártires, uma vítima da violência do latifúndio e outra da grande cidade desumanizada. No entanto, se foi Miguelona quem fez com que Maria Pedrão se enforcasse, dizendo a ela que seu amante Índio Cristo se interessava por Miguelona e não por ela, então Maria Pedrão foi vítima da antipatia de uma camponesa como ela. A passagem demonstra o ódio mútuo entre os pobres, sua desunião e o fato de que matam uns aos outros por motivos fúteis.
As lembranças da revolução melancólica de 32 prosseguiram em Beco do Escarro, principalmente quando transcrita uma carta de Idílio Moscovão, ex-delegado da pequena Jurema e uma figura que tinha tomado partido do Major Formoso nos conflitos de terra no início de Marco Zero. É o pai leproso da militante Linda Moscovão (Maria Parede). Provavelmente ele entraria no capítulo Noturno em Miséria Maior, pois é nessa situação que ele se revela em uma carta:

Sabendo-me isolado da sociedade pela terrível moléstia que peguei na gloriosa revolução constitucionalista e sem recurso nenhum peço a caridade de seu coração generoso me enviar algum recurso para festejar o natal (ANDRADE, 1948).

É bem provável que essa carta fosse dirigida à sua filha Maria Parede, da qual ele tinha se afastado. Na condição de doente e pobre, reclama ajuda para festejar o natal, buscando comover a interlocutora. A passagem mostra o abandono e a miséria em que foram deixados os combatentes da “revolução melancólica”. Beco do Escarro apontou, portanto, para uma reconciliação entre pai e filha, separados por convicções políticas diversas (Linda Moscovão aderiu ao comunismo e trocou de nome para Maria Parede, enquanto Idílio Moscovão era próximo ao Major Formoso e foi servir também aos grandes fazendeiros lutando na revolução de 32, onde contraiu lepra, doença que implicava em segregação social pelo resto da vida).
Pelos apontamentos acima, o fragmento intitulado “Via Sacra” possivelmente se encaixaria no Natal no Arranha-Céu, onde seria narrado o drama dos Silva Mafra, que se fazia entre a religião mortificante e a vida, drama às críticas à Igreja Católica que Oswald fez freqüentemente. O capítulo se abriria com os seguintes versos:

Tudo que é ilusão morte [no] fundo é triste
Porque é sentimento que se esquece
E sentimento e dor que a alma reside quando
Nasce ao Amor e ao Amor: a prece (ANDRADE, 1947).

Nesse capítulo, que provavelmente seria a história de uma família (Silva Mafra), assim como os dois anteriores Marco Zero foram a história de uma família em crise (os Formoso), tema presente, por exemplo, em Os Buddenbrooks, de Thomas Mann. O tom piegas e Kitsch sugere a paródia de uma fotonovela. Um drama típico seria ali inserido para criticar a Igreja Católica: o namoro de Vinícius, homem casado, com a jovem católica Stella (Silva Mafra?), provocando grande sofrimento na jovem, dividida entre o amor interdito e a suas convicções religiosas, ou seja, entre a religião proibitiva e o apelo dos sentidos. Dionísio contra o crucificado lutando dentro da personagem Stella, portanto. A seguir, existe uma passagem de difícil codificação:

Na Orestia (final) sublimação de Talião. A Autoland – o apoio dado à extrema-direita com Talita Comum. Ubaldo e a turma do automóvel, uísque, cachimbo e Sto. Amaro. Na escola completamente nulos (Bonfim) (ANDRADE, 1948).

É provável que tal fragmento fosse parte dos planejados Retiro Feliz e Os Planadores, provavelmente um universo inspirado no romance Babbitt, publicado em 1922 por Sinclair Lewis, ou seja, o mundo de aparências e falsidade dos homens de negócios e da classe média norte-americana. É bem provável que todos os ingredientes acima citados fossem se orquestrar para mostrar as tragédias da burguesia liberal paulista à qual pertencia Ubaldo Junquilho, personagem da elite liberal que organizou a revolução de 32 e apareceu próximo ao integralismo em Chão: o apoio à extrema direita de Plínio Salgado, o desprezo da educação e da cultura, substituídas pelo hedonismo pragmático do uísque e do automóvel.
A oposição da lei de Talião (à qual o fragmento acima se referiu), a lei do “dente por dente” à trilogia Orestia possivelmente está em "Coéforas", uma das peças da trilogia de Ésquilo onde Orestes e Electra, filhos de Agamêmnon, vingam sua morte, matando a mãe e seu amante. A ira de Climnestra é materializada nas Fúrias, vistas somente por Orestes, são as responsáveis por sua loucura em "Eumênides". Ainda na última peça, Orestes é julgado pelo seu crime pela Deusa Atenas que proclama que o tribunal – o primeiro a julgar um crime de homicídio – fica instituído para sempre.
Quem sabe, Dago Lima ficaria no mesmo papel do príncipe Míchkin em O Idiota, de Dostoiévski: um personagem generoso e bem intencionado, mas frágil e ridicularizado em seu círculo social. Uma coisa, porém, esteve muito clara em sua mente desde os primeiros esboços: a personagem de Míchkin tinha de atingir o grau supremo da evolução do indivíduo, quando ele é capaz de sacrificar-se em benefício de todos. Para isso deveria estar isento de individualismo e de egoísmo, ser capaz de abdicar do "eu para mim" em prol do "eu para os outros", para a coletividade, isto é, de realizar o supremo ideal ético do próprio Dostoiévski, que este só considerava possível em Cristo, e que pode ser resumido da seguinte maneira: "... o mais alto emprego que o homem pode fazer de sua personalidade, da plenitude do desenvolvimento do seu eu, é como que eliminar esse eu, consagrá-lo inteiramente a todos e a cada um, sem reservas e com abnegação" (BEZERRA, 2008). Daí o Míchkin com sua utopia do amor-compaixão por todos, por Marie e pelas crianças, por Hippolit, Keller, Liébediev, predominantemente por Nastácia Filíppovna, personagem complexa e mais uma integrante da galeria de humilhados e ofendidos tão cara ao romancista. O desajuste individual frente ao mundo também foi assunto de uma fala inteira do personagem Dago Lima. Nela, Dago confessa a si mesmo que sua “vida caçadora” representa uma derrota:

Por que negar? Por que dissimular a mim mesmo? Ficaria uma ferida. Aquele sujo pretexto de dever cumprido não possa de um recurso sanitário da velha hipocrisia que me caracteriza. O mal não é meu só. É de todo o século. Quando não cumpriu o seu dever antropofágico, que é o de estraçalhar a prosa à vista, perante a adesão gulosa dos outros, compõe uma máscara generosa que o justifique. Por que, no fundo, essa timidez de colegial num velho sexagenário que já perdeu todas as ilusões? Menos a da barata noturna que procura um naco de chulé num chinelo velho de um quarto. E que foge desatinada ante o menor barulho: por que não posso brilhar? Não quero brilhar. Não quero ser o tal. Nem quero sequer existir. Não enxergo nada. Talvez se enxergasse e recompusesse a situação estrategicamente, me faltasse a força interior. A estudar tudo isso, caracterizar caracteriologicamente, o melhor ideal seria aquele capaz ao mesmo tempo de estratégia e de ação. A estratégia está presa ao terreno, a ação ao chamado íntimo. Uma coisa não vai com outra. E sou demasiadamente íntimo (ANDRADE, 1948).

O personagem desesperançado acima, que aparentemente não acredita em nada, não deixou de lado a antropofagia. Mais adiante, o mesmo Dago Lima mostra acreditar na Renascença como o marco do surgimento da burguesia e ainda vai além: vê na Monalisa a primeira expressão da classe social emergente, acreditando, portanto, no determinismo da estrutura sobre a superestrutura. Oscila, portanto, do niilismo ao marxismo determinista, não sem ironizar a facilidade do humanismo: “Eu defendo a Gioconda. Identificação de classe. O primeiro sorriso burguês! Era muito fácil, no entanto, recorrer ao humanismo” (ANDRADE, 1948).
Talvez fosse uma passagem da Hospedaria do Piolho Vermelho, conforme a referência a um quarto com baratas nos leva a pensar, assim como o desencanto político e existencial notório. Há também uma anotação (provavelmente seria usada em Beco do Escarro) onde Oswald observou que o conceito de humanismo, tirado por Sartre de Cocteau, não existia realmente. A passagem de O Existencialismo é um Humanismo à qual ele se refere é a seguinte:

Na realidade, a palavra humanismo tem dois significados muito diferentes. Por humanismo pode entender-se uma teoria que toma o homem como fim e como valor superior. Neste sentido há humanismo em Cocteau, por exemplo, quando, na sua narrativa A volta ao mundo em oitenta horas, uma personagem declara, por sobrevoar montanhas de avião: o homem é espantoso. Significa isto que eu, pessoalmente, que não construí aviões, beneficiar-me-ei destas invenções extraordinárias, e que poderei pessoalmente, na qualidade de homem, considerar-me como responsável e honrado com os atos particulares de alguns homens. Isso implicaria que poderíamos dar um valor ao homem segundo os atos mais altos de certos homens. Este humanismo é absurdo, porque só o cão ou o cavalo poderiam emitir um juízo de conjunto sobre o homem e declarar que o homem é espantoso, coisa que eles estão longe de fazer, tanto quanto eu sei... Mas, quanto a um homem, não se pode admitir que possa emitir um juízo sobre o homem. O existencialismo dispensa-o de todo julgamento deste gênero; o existencialista não tomará nunca o homem como fim, porque ele está sempre por fazer. E não devemos crer que há uma humanidade à qual possamos render culto, à maneira de Augusto Comte. O culto da humanidade conduz ao humanismo fechado sobre si de Comte, e, é necessário dizê-lo, ao fascismo. É um humanismo com o qual não queremos nada.
Mas há um outro sentido de humanismo, que significa no fundo isto: o homem está constantemente fora de si mesmo, é projetando-se e perdendo-se fora de si que ele faz existir o homem e, por outro lado, é perseguindo fins transcendentes que ele pode existir; sendo o homem esta superação e não se apoderando dos objetos senão em referência a esta superação, ele vive no coração, no centro desta superação. Não há outro universo senão o universo humano, o universo da subjetividade humana. É a esta ligação da transcendência, como estimulante do homem - não no sentido de que Deus é transcendente, mas no sentido de superação - e da subjetividade, no sentido de que o homem não está fechado em si mesmo, mas presente sempre num universo humano, é a isso que chamamos humanismo existencialista. Humanismo, porque recordamos ao homem que não há outro legislador além dele próprio, e que é no abandono que ele decidirá de si; e porque mostramos que isso não se decide com voltar-se para si, mas que é procurando sempre fora de si um fim - que é tal libertação, tal realização particular - que o homem se realizará precisamente como ser humano (SARTRE, 1978, 21)

Realmente, é possível verificar que Sartre retirou um conceito de humanismo não de uma formulação ensaística de Cocteau, mas puramente da boca de um personagem, ou seja, do senso comum. Ser humanista seria cultuar o humano; o fascista seria justamente a instrumentalização brutal da humanidade em prol de um grupo humano, ou seja, o contrário de um humanismo. A formulação clássica dizia que “tudo o que é humano me interessa”; o nazista poderia dizer: “da humanidade, só o que é alemão me interessa, o resto pode ser descartado”. Sartre apressadamente associou o humanismo clássico ao positivismo e ao fascismo, mas não desconstruiu, na passagem acima, um conceito verdadeiro. Ao criticar essa passagem, penso que Oswald de Andrade estava correto: o positivismo de Comte afirma o ser humano e rejeita a teologia e a metafísica, tendo muito mais em comum com o existencialismo ateu do que Sartre poderia estar disposto a admitir.
Dou por encerrado aqui, com esse esforço filosófico, essa investigação, um esforço quase de detetive e de adivinhação do que seria o Beco do Escarro. Creio que, graças às pesquisas no acervo no CEDAE e no Fundo Oswald de Andrade e na busca de textos esparsos como “Sombra Amarela”, ainda será possível saber muito mais a respeito de Marco Zero e dos romances não finalizados de Oswald de Andrade, lançando luz sobre uma produção importante, rica e ainda relativamente obscura.

-0-0-0-0-0-

BIBLIOGRAFIA

ANDRADE, Oswald de. Beco do Escarro. Texto manuscrito. (Fundo OA, CEDAE/ IEL/ UNICAMP).
_________________. Revolução Melancólica. Rio de Janeiro: Globo, 1991.
_________________. Chão. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974.
_________________. Estética e Política. Rio de Janeiro: Globo, 1992.
BEZERRA, Paulo. A Vida como Leitmotiv. Folha on line. http://www1.folha.uol.com.br/folha/sinapse/ult1063u245.shtml. (acesso em 10/10/2008).
GIRON, Luiz Antônio. Um Homem Sem Profissão nem Esperança. Jornal Valor Econômico, a 22 de março de 2002.
LOPES, Ana Maria Pereira. Anos 20: Maldição ou Benção para Babbitt? http://www.ipv.pt/millenium/millenium27/12.htm. (Acesso em 11 de outubro de 2008).

-0-0-0-0-0-

CAPAS DO “MARCO ZERO” DO OSWALD DE ANDRADE

MARCO ZERO I

A REVOLUÇÃO MELANCÓLICA

EDITORA JOSÉ OLYMPIO

MARCO ZERO II - CHÃO

EDITORA JOSÉ OLYMPIO

MARCO ZERO I

A REVOLUÇÃO MELANCÓLICA

MEC

MARCO ZERO 2 - CHÃO - MEC

MARCO ZERO I - EDITORA GLOBO

MARCO ZERO II - EDITORA GLOBO
-0-0-0-0-0-

DO AUTOR

(*) Lúcio Emílio do Espírito Santo Júnior, natural de Bom Despacho, MG. Graduado em Filosofia e mestre em Estudos Literários (UFMG). Doutorando em Teoria e História Literária (UNICAMP). Escreve no blog Penetrália (
www.penetralia-penetralia.blogspot.com). Contato: (lucio@bdonline.com.br). Em 11 de setembro de 2007, edita no site Cronópios, a crítica: “Decifra-me ou Devoro-te: Fragmentos inéditos de O BECO DO ESCARRO” (www.cronopios.com.br/site/artigos.asp?id=677).