terça-feira, 25 de março de 2008

QUAL FOI O MOTIVO DOS MODERNISTAS TEREM IGNORADO LIMA BARRETO?

UM POUCO DE:
LIMA BARRETO


Dentre todos os livros do Lima Barreto, particularmente prefiro o “Diário Íntimo”, prefaciado por Gilberto Freire. É simplesmente maravilhoso pelo fato de mostrar o Lima Barreto exatamente como ele foi... ou como pretendia ser.
Nas pesquisas e estudos ainda em andamento, percebi que Alfredo Bosi o classifica como um dos últimos Pré-Modernistas. Paula Beiguelman, autora do lindíssimo “Por que Lima Barreto”, editora Brasiliense – Sp – 1981. Considero a Paula totalmente suspeitável, pois demonstra uma imensa paixão pela obra do autor de Recordações do Escrivão Isaías Caminha e Numa e a Ninfa: ela o classifica como o “Grande Romancista” - e, independentemente da tietagem da Paula, Lima realmente foi e ainda é um dos nossos “grandes” literatos. O que ela narra é simples e lógico: “Para entendermos Lima Barreto precisamos aprender primeiramente “como ler” e “porquê” ler suas obras, pois contrariamente continuará sendo um simples escritor alcoólatra e sem formação universitária, como afirma Alfredo Bosi.
Os mestres Carlos Emílio Faraco e Francisco Marto Moura, no “Língua e Literatura”, Editora Ática, livro dedicado aos estudantes do 2º Grau, são puramente didáticos, mas colocam Lima Barreto no zênite do Pré-Modernismo. Na verdade eu tenho a certeza de que Lima Barreto só não foi “totalmente” modernista pelo fato lógico de ter falecido antes de conhecer os moços de 22.
Apesar de muitos modernistas terem ignorado Lima Barreto, fato até hoje muito discutido, mas que ele foi ignorado... ah! não tenham dúvidas: foi mesmo.
No desenvolvimento das minhas pesquisas irei ainda concluir estudos já iniciados, sobre um texto significativo do Mário de Andrade sobre Lima Barreto, assim como de outros autores, desnecessário nomeá-los agora. Basta, neste momento, apenas familiarizarmos estudando uma simples Cronologia Biográfica e Artística do Lima, que no início dos meus estudos havia intitulado de: Lima Barreto: Sua Cronologia Biográfica e Cultural.

Luiz de Almeida


CRONOLOGIA BIOGRÁFICA
E ARTÍSTICA

1881 – 13 de Maio, nasce no bairro das Laranjeiras no Rio de Janeiro, à Rua Ipiranga, N.º 18, Afonso Henriques de Lima Barreto, segundo filho da professora pública Amália Augusta Barreto e do tipógrafo João Henriques de Lima Barreto. Em 13 de Outubro é batizado na igreja matriz de Nossa Senhora da Glória, no Rio de Janeiro.
1887 –
Dezembro, de tuberculose, morre sua mãe no Rio de Janeiro.
1888 –
Em Março é matriculado na Escola Pública do Rio de Janeiro, regida por D. Tereza Pimentel do Amaral, à Rua do Rezende n.º 143-A. 13 de Maio, dia que Lima Barreto fazia 7 anos, era assinada a Lei Áurea, abolindo a escravatura. Foi levado pelo pai para participar dos festejos que tomaram o Rio de Janeiro.
1889 – Proclamação da República. Em Agosto, o pai do escritor é promovido de chefe de turma a mestre das oficinas de composição da Imprensa Nacional.
1890 – Em 11 de Fevereiro, o pai do escritor é demitido da Imprensa Nacional. Em 5 de Março João Henriques é nomeado escriturário das Colônias de Alienados da Ilha do Governador. Em Novembro, Lima Barreto recebe, como prêmio escolar, um exemplar da obra de Luís Figuier: “As Grandes Invenções”.
1891 –
Em Março, matricula-se como aluno interno, no Liceu Popular Niteroiense, dirigido por William Cunditt, custeado pelo padrinho, Visconde de Ouro Preto; Em 20 de Março, o pai João Henriques é promovido a almoxarife das Colônias de Alienados da Ilha do Governador.
1893 – Em 30 de Dezembro, João Henriques é nomeado Administrador das Colônias.
1895 –
Em 12 de Janeiro, faz exame de Português, no Ginásio Nacional, Rio de Janeiro e é aprovado. Em 17 de Agosto, faz exame de Francês e também é aprovado.
1896 –
Em 10 de Janeiro, faz exames de História Geral e do Brasil – também foi aprovado. Dia 29 de Janeiro é aprovado no exame de Aritmética. Em Março, matricula-se, como aluno interno, no Colégio Paula Freitas, no Rio de Janeiro, à Rua Haddock Lobo – curso anexo de preparatórios à Escola Politécnica.
1897 –
Em 18 de Janeiro, faz exame de Desenho Geométrico Elementar, na Escola Politécnica (vestibular) e é aprovado. Em 5 de Fevereiro, faz exames de álgebra, geometria, trigonometria retilínea e álgebra superior na Escola Politécnica (Vestibular), e foi aprovado. Dia 1 de Abril, faz exame de física e química, no Ginásio Nacional: aprovado. Em 2 de abri, matricula-se, como ouvinte, na 2ª cadeira do 2º ano do Curso de Engenharia Agronômica da Escola Politécnica (Zoologia). Em 7 de Abril, faz exame de História Natural, no Ginásio Nacional. Foi aprovado. Em 10 de Abril, matricula-se no 1º ano do Curso Geral da Escola Politécnica. Em Novembro, faz exame das cadeiras do 1º ano. É aprovado apenas em física e reprovado nas demais matérias.
1898 –
Em Abril, matricula-se no 1º ano da Politécnica. Em Novembro, faz exames de Cálculo e Geometria Descritiva, cadeiras que faltam para completar o 1º ano. Foi reprovado.
1899 –
Em 15 de Fevereiro, faz exames de segunda época. Aprovado em Geometria. Reprovado em Cálculo. Em 1º de Maio renova a matrícula no 1º ano. Matricula-se no 2º ano, como ouvinte. Em Novembro faz exame de Cálculo e é reprovado.
1900 –
Em 15 de Fevereiro, faz exame de Cálculo em segunda época. Reprovado novamente. Viaja a Barcelona, em exercícios práticos da cadeira de Topografia. Em Novembro, faz exame de Cálculo mais uma vez. Foi aprovado. Faz, ao mesmo tempo, exame das cadeiras do 2º ano. É aprovado em todas as matérias, exceto em Mecânica Racional.
1901 –
Em 21 de Janeiro, faz exame de Mecânica, em segunda época. Foi reprovado. Em Abril, matricula-se no 2º ano, pois continua repetente em Mecânica. Matricula-se também no 3º ano, como ouvinte.
1902 –
Em Março é reprovado novamente em Mecânica. Em Agosto, João Henriques, o pai de Lima Barreto, enlouquece. Em 30 de Agosto, Lima Barreto inicia sua colaboração em jornal acadêmico, escrevendo para A Lanterna, a convite de Bastos Tigre. A Família Lima Barreto muda-se da Ilha do Governador para o Rio de Janeiro, indo residir no Engenho Novo, à Rua Vente e Quatro de Mario, Nº 123. Em 10 de Outubro, o pai João Henriques tira uma licença de três meses, para tratamento de saúde. Em Novembro, Lima Barreto presta novo exame de Mecânica. Foi reprovado novamente. Com Bastos Tigre, edita um periódico de efêmera duração: A Quinzena Alegre.
1903 –
Em 2 de Março sai Decreto aposentando João Henriques de Lima Barreto do cargo de Administrador das Colônias de Alienados da Ilha do Governador. Em 12 de Março, Lima Barreto é reprovado em Mecânica, pela quinta vez. Dia 31 de Março, matricula-se novamente no 2º ano e, como ouvinte, no 3º. Colabora no Tagarela, jornal humorístico de Raul, Klixto e outros, sob o pseudônimo de Rui de Pina. Dia 18 de Junho, inscreve-se no concurso para o preenchimento de uma vaga de amanuense na Diretoria do Expediente da Secretaria da Guerra. Dia 9 de Julho, é classificado em segundo lugar no concurso para a Secretaria da Guerra, com 6,7; o primeiro colocado tirou 6,11. Dia 12 de Agosto, aparecimento do semanário O Diabo, de Bastos Tigre e outros; Foram apenas quatro números e contou com a colaboração de Lima Barreto. Dia 27 de Outubro, é nomeado amanuense (assim eram chamados os escriturários naquela época) da Diretoria do Expediente da Secretaria da Guerra. Dia 28 de Outubro, toma posse do cargo. Passa a residir em Todos os Santos, à Rua Boa Vista, Nº 76. Durante alguns meses exerce as funções de Secretário da Revista da Época, dirigida por Carlos Viana, ex-colega da Politécnica. No Ministério trabalhava Domingos Ribeiro Filho, escritor boêmio que carrega Lima Barreto para freqüentar bares e cafés do centro do Rio, onde freqüentavam os intelectuais cariocas.
1904 –
Começa a escrever “Clara dos Anjos” (primeira versão).
1905 –
28 de Abril inicia no Correio da Manhã uma série de reportagens, sem assinatura, sob o título: “Os Subterrâneos do Morro do Castelo”. Em 3 de Junho, publica no Correio a última série do título mencionado. 12 de Julho – Data do prefácio das “Recordações do Escrivão Isaías Caminha”: por essa época provavelmente começou a escrever o livro.
1906 – 8 de Outubro, data do prefácio de “Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá”: tudo indica que escreveu este livro, que só veio a ser publicado em 1919, em fins de 1906 e parte de 1907. 10 de Outubro – entra em licença para tratamento da saúde, até 15 de Janeiro de 1907 (fraqueza geral, diz o exame médico).
1907 –
Em Abril – começa a trabalha no Fon-Fon, como Redator. 20 de Junho – em carta a Mário Pederneiras, demite-se da Redação do Fon-Fon. 25 de Outubro – Primeiro número da “Floreal”, onde inicia a publicação de “Recordações do Escrivão Isaías Caminha”. 1º de Dezembro – Sai o terceiro número de Floreal. 31 de Dezembro – Sai o quarto e último número de Floreal.
1909 – Em Fevereiro – Antônio Noronha santos segue para a Europa, levando os originais do “recordações do Escrivão Isaías Caminha. Com Antônio Noronha Santos, edita um panfleto contra a candidatura de Hermes da Fonseca à presidência da República. Intitula-se “O Papão” – “Semanário dos bastidores da política, das artes e”.... das candidaturas”.
1910 –
Em Setembro – viaja para Juiz de Fora – MG. Participa do júri do concurso Primavera de Sangue. Em 1º de Dezembro entra em licença na Secretaria da Guerra e Inicia novo tratamento de saúde, até 28 de Fevereiro de 1911. O alcoolismo tomava contra do escritor – Impaludismo, diz o exame médico.
1911 –
Em Janeiro – começa a escrever “Triste Fim de Policarpo Quaresma”, concluindo em Março. Em 20 de Abril – começa a colaborar na Gazeta da Tarde, cujo Redator-Chefe é Vitor Silveira. Em 11 de Agosto, o Jornal do Commercio (edição da tarde) inicia a publicação em folhetins do romance “Triste Fim de Policarpo Quaresma”. 12 de Agosto – participa do movimento para a criação da Academia dos Novos, patrocinada pelo jornal A Imprensa, de Alcindo Guanabara. Em 19 de Outubro – o Jornal do Comércio (edição da tarde) publica o último folhetim do “Triste Fim de Policarpo Quaresma”.
1912 –
Em 1º de Fevereiro – volta a tirar licença para tratamento da saúde até 30 de Abril, (reumatismo poli articular, hipercinese cardíaca). Em 27 de Junho – é posto à venda O Chamisco ou o Querido das Mulheres. Assim o anuncia O Riso: “O Chamisco ou o querido das mulheres. O nec plus ultra da literatura brejeira. Desopilante história de um conquistador irresistível. Esse belo livrinho contém cinco nítidas gravuras. Preço 1$500. Pelo correio, 2$000. Pedidos a A. Reis & Cia. R. do Rosário, 99 Telef. 3803. Rio de Janeiro”. Em Setembro – publica os dois fascículos conhecidos das Aventuras do Doutor Bogóloff: I – Fiz-me então, diretor da Pecuária Nacional, e II – Como escapei de “salvar” o Estado dos Carapicus. Em 10 de Setembro – Aparece Entra Senhórr!..., edição da revista O Riso. No anúncio, publicado na mesma revista, lê-se o seguinte: Entra, Senhórr!... Sensacional romance humorístico. Narrativa de episódios interessantes, passados na alcova de uma horizontal. Belíssimas fotografias ornam esse hilariante romance. Preço 1$500. Pelo correio, 2$000. Pedidos a A. Reis & Cia. R. do Rosário, 99. Telef. 3803. Rio de Janeiro”.
1913 –
13 de Setembro – muda-se para a Rua Major Mascarenhas nº 42, em Todos os Santos.
1914 –
19 de Junho – começa a escrever, diariamente, uma crônica para o correio da Noite, jornal de Vitor Silveira, secretariado por Emílio Alvim. Em Julho – participa do movimento para a fundação da Sociedade dos Homens de Letras. Em 18 de Agosto – primeira estada no Hospício, de 18 de Agosto a 13 de Outubro. Em 1 de Novembro – tira licença para tratamento de saúde, até 31 de3 Janeiro do ano seguinte (Neurastenia, segundo o exame médico).
1915 –
Em 15 de Março – o jornal A Noite indica a publicação, em folhetins, de “Numa e a Ninfa”. Em 27 de Março – inicia a primeira fase da sua longa colaboração na Careta, que vai até 24 de Junho de 1916.
1916 –
Em 26 de Fevereiro – aparecimento, em volume do, “Triste Fim de Policarpo Quaresma”. Em Junho - viaja para Ouro Fino – MG. Em 16 de Junho – é licenciado para tratamento de saúde, até 17 de Julho do mesmo ano (Neurastenia, com anemia pronunciada, opina a junta médica que o examinou). Em 25 de Dezembro – inicia a sua colaboração no A.B.C., semanário político, dirigido a princípio por Ferdinando Borla e depois por Paulo Hasslocher e Luís Morais.
1917 –
Em Julho – é recolhido, enfermo, ao Hospital Central do Exército. Entrega ao editor Jacinto Ribeiro dos Santos os originais de “Os Bruzundangas”, que só aparecerão em volume em Dezembro de 1922, um mês após a morte do escritor. Em 21 de Agosto – em carta a Rui Barbosa, declara-se candidato à Academia Brasileira de Letras, na vaga existente com a morte de Sousa Bandeira. A inscrição não foi considerada. Em Setembro – Surge a 2ª Edição do “Recordações do Escrivão Isaías Caminha”. Aparecimento de “Numa e a Ninfa”, em volume.
1918 –
Em 17 de Setembro – começa a publicar no vespertino Lanterna uma série de crônicas, sob o pseudônimo de Dr. Bogóloff. Em 11 de Maio – lança no A.B.C. o seu manifesto maximalista, que termina com o grito de guerra: “Ave, Rússia”! Em 25 de Julho – num artigo, publicado no semanário Brás Cubas, sob o título: “Vera Zassúlitch”, manifesta a sua simpatia pela Revolução Russa (“Não posso esconder o desejo de ver um [movimento] semelhante aqui”...). Em 29 de Julho – requer aposentadoria do seu cargo na Secretaria da Guerra, “julgando-se inválido par o serviço púbico e contando mais de 10 anos, nos termos da Constituição e das Leis”. Em 17 de Agosto – submete-se à primeira junta médica, que o examinou e que o considera inválido para o serviço público, por “sofrer de epilepsia tóxica”. 1º de Setembro - licenciado para tratamento de saúde, até 27 de Dezembro do mesmo ano. Em 4 de Novembro – é recolhido ao Hospital Central do Exército com a clavícula fraturada. Ali fica até 5 de Janeiro de 1919. Em 9 de Novembro – remete a Monteiro Lobato os originais do “Vida e Morte de M. J., Gonzaga de Sá”. Em 27 de Novembro – realiza o segundo exame médico, para efeito da aposentadoria. O resultado é idêntico ao primeiro. Em 26 de Dezembro – sai o Decreto do Presidente da República, aposentando Afonso Henriques de Lima Barreto, 3º Oficial da Diretoria do Expediente do Ministério da Guerra. Tempo líquido de serviço militar: 14 (quatorze) anos, 3 (três) meses e 12 (doze) dias. Muda-se para a Rua Marechal Mascarenhas, Nº 26.
1919 –
1º de Fevereiro – suspende a sua colaboração no A.B.C., pelo fato de ter sido publicado nessa revista um artigo contra a raça negra. Em 22 de Fevereiro – é posta à venda a 1ª Edição do “Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá”. Em 24 de Fevereiro – candidato à Academia, na vaga de Emílio de Meneses, obtém dois votos nos primeiro e segundo escrutínios e apenas um voto no terceiro e quarto. Em 20 de Março – começa a publicar no semanário Hoje uma série de crônicas de folclore urbano, intituladas: “As mágoas e sonhos do povo”. Em 13 de Setembro – inicia a segunda fase da sua colaboração na Careta, só interrompida com a morte. Em 39 de Outubro – nova eleição para a vaga de Emílio de Meneses. É eleito Humberto de Campos. Em 25 de Dezembro – segunda estada no Hospício, até 2 de Fevereiro de 1920.
1920 –
Em Fevereiro deixa o hospício. Lá deu início ao “Diário do Hospício”, que pretendia aproveitar para o romance “O Cemitério dos vivos”, nunca concluído. Obtém Menção Honrosa da Academia Brasileira de Letras pelo livro: “Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá”, entregue na Academia em 4 de Dezembro. Em Dezembro – aparece, nas livrarias, “Histórias e Sonhos”. Ainda em Dezembro – entrega ao editor Schettino os originais de “Marginália”, que se perderam.
1921 –
Em Janeiro – publica um trecho do romance: “O Cemitério dos Vivos” tem um trecho publicado, em Janeiro, na Revista Souza Cruz, sob o título "As origens", memórias manuscritas não completadas pelo autor. Em Abril, viaja para Mirassol – Estado de São Paulo. A Academia Brasileira de Letras concede menção honrosa ao “Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá”. Provavelmente em Junho, parece o Gonzaga de Sá “de roupa nova” (expressão de Monteiro Lobato); o editor trocara a capa, colocando os dizeres: “menção honrosa da Academia Brasileira de Letras” e pôs o livro novamente em circulação. Em 1º de Julho – apresenta-se candidato à Academia, na vaga de Paulo Barreto (João do Rio). Monteiro Lobato desloca-se de São Paulo até o Rio de Janeiro com o objetivo de conhecer Lima Barreto. Encontrou-o em estado tão lastimável que preferiu não se identificar, para não humilhar mais o escritor. Ramulfo Prata, médico e escritor, era admirador incondicional de Lima Barreto, e tentou salvar a vida do escritor levando-o para sua casa em Mirassol, interior de São Paulo. Entrega ao editor os originais de Bagatelas, no qual reúne a sua Maior produção na imprensa a partir de 1918, em que evidencia com rara visão e clareza os problemas do país e do mundo do pós-guerra. De passagem por São Paulo conheceu pessoalmente Monteiro Lobato. A ajuda do amigo médico de nada adiantou. A Revista Souza Cruz publica a palestra “O Destino da Literatura” de Lima Barreto que o escritor tinha preparado para pronunciá-la em Rio Preto. O público não assistiu ao pronunciamento do escritor, pois no dia da apresentação ele foi encontrado bêbado numa sarjeta. Em Agosto – entrega ao editor os originais de Bagatelas, que só vão aparecer em 1923. Em 28 de Setembro – retira a sua candidatura à Academia, na vaga de Paulo Barreto, “por motivos inteiramente particulares e íntimos”. Em Outubro e Novembro – publica na Revista Souza Cruz a conferência: “O Destino da Literatura”, a única que fez e que deveria ter sido pronunciada em Rio Preto (Estado de São Paulo), por ocasião da sua estada em Mirassol. Em Dezembro – começa a escrever “Clara dos Anjos” (segunda versão), que terminou em Janeiro do ano seguinte. Candidata-se, em Julho, pela terceira vez à Academia Brasileira de Letras na vaga de Paulo Barreto (João do Rio), mas prevendo que não seria eleito, acabou retirando a candidatura. Monteiro Lobato havia se deslocado de São Paulo até o Rio de Janeiro com o objetivo de conhecer Lima Barreto. Encontrou-o em estado tão lastimável que preferiu não se identificar, para não humilhar mais o escritor. Ramulfo Prata, médico e escritor, era admirador incondicional de Lima Barreto, e tentou salvar a vida do escritor levando-o então para sua casa em Mirassol, interior de São Paulo. Entrega ao editor os originais de Bagatelas, no qual reúne a sua Maior produção na imprensa a partir de 1918, em que evidencia com rara visão e clareza os problemas do país e do mundo do pós-guerra. De passagem por São Paulo conheceu pessoalmente Monteiro Lobato. A ajuda do amigo médico de nada adiantou. A Revista Souza Cruz publica a palestra “O Destino da Literatura” de Lima Barreto que o escritor tinha preparado para pronunciá-la em Rio Preto. O público não assistiu ao pronunciamento do escritor, pois no dia da apresentação ele foi encontrado bêbado numa sarjeta.
1922 –
Em Fevereiro acontece a Semana de Arte Moderna, de 11 a 18 de fevereiro, em São Paulo. Ele não participa da Semana. Provavelmente nesse início de ano foi entregue ao editor Schettino os originais de “Feiras e Mafuás”. Na revista O Mundo Literário, publica o primeiro capítulo do romance inédito: “Cara dos Anjos” – “O Carteiro”.
1922 – 1.º de Novembro, às 17 horas, vítima de gripe torácica e colapso cardíaco causado pelo uso abusivo de bebida alcoólica, Lima Barreto falece em sua casa, na Rua Mascarenhas, n.º 26, em Todos os Santos, subúrbio do Rio de Janeiro, 48 horas antes do falecimento do seu pai João Henriques de Lima Barreto.


OBRAS DO ESCRITOR LIMA BARRETO

I – ROMANCES:
1 – Recordações do Escrivão Isaías Caminha
2 – Triste Fim de Policarpo Quaresma
3 – Numa e a Ninfa
4 – Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá
5 – Clara dos Anjos

II – HUMORISMO:
1 – Aventuras do Dr. Bogóloff

III – CONTOS:
1 – Histórias e Sonhos
2 – Outras Histórias e Contos Angelinos

IV – SÁTIRAS:
1 – Os Bruzundangas

V – CRÔNICAS:
1 – Bagatelas
2 – Feiras e Mafuás
3 – Marginália
4 – Coisas do Reino do Jambom
5 – Vida Urbana

VI – MEMÓRIAS:
1 – Diário Íntimo

VII – CRÍTICAS LITERÁRIAS
1 – Impressões de Leitura

DIVERSOS:
1 – Folhetins
2 – Revistas
3 – Semanários
4 – Outros Periódicos
5 – Jornais
6 – Epistolografia (Correspondências Ativa e Passiva).



A HISTÓRIA DO “DIÁRIO ÍNTIMO”

Quando Lima Barreto faleceu, em de novembro de 1922, seus bens pessoais - que se resumiam a uma biblioteca e muitos manuscritos - ficaram sob a guarda de sua irmã, Evangelina, a única da família que compartilhava com o irmão o interesse pela cultura. Numa mudança do bairro de Todos os Santos (onde a família morava na famosa Vila Quilombo) para Inhaúma, os papéis saíram de ordem e quem sabe alguma coisa tenha se perdido.
Nessa condição foram encontrados, mais de 20 anos depois, por Francisco Assis Barbosa, biógrafo do escritor e organizador da publicação de sua obra completa. A papelada foi comprada pela Biblioteca Nacional em 1949 e encontra-se hoje na Divisão de Manuscritos.
Além da Correspondência, contos, artigos e romances, havia um outro grupo de escritos, composto de álbuns de recortes, cadernetas e papéis avulsos, com poesias, contos populares recolhidos de terceiros, notas de um diário, anotações literárias, etc. Esse material estivera para ser publicado em 1926 pelo editor A. J. Pereira da Silva, que desistiu por considerá-lo "cheio de inconveniências", não sabemos se pelo estado caótico em que se encontravam, ou por estarem ainda vivas muitas das personalidades ridicularizadas no texto por Lima Barreto.
Essa foi a origem do Diário Íntimo (1903 - 1921), segundo o próprio Assis Barbosa, que o organizou, "recuperado página a página de cadernetas de apontamentos e anotações esparsas, às vezes até em tiras soltas, retiradas de calendários e livrinhos de endereços". Publicado primeiramente em 1953 pela Editora Mérito, saiu três anos depois em versão definitiva e aumentada pela Brasiliense.
No Diário, por não pretender publicação, Lima Barreto se mostra por inteiro, nos seus ressentimentos e idiossincrasias, na sua reconhecida preocupação social, nas farpas e ironias políticas, na vida pessoal infeliz, na preocupação com a situação precária do negro na Primeira República. Há esboços de obras ficcionais nunca terminadas, e notas relativas aos seus romances (Isaías Caminha, Gonzaga de Sá, Policarpo Quaresma, Numa e a Ninfa e Clara dos Anjos).


UM TEXTO DE LIMA BARRETO:
"ELOGIO DA MORTE"

Não sei quem foi que disse que a Vida é feita pela Morte. É a destruição contínua e perene que faz a vida.
A esse respeito, porém, eu quero crer que a Morte mereça maiores encômios.
É ela que faz todas as consolações das nossas desgraças; é dela que nós esperamos a nossa redenção; é ela a quem todos os infelizes pedem socorro e esquecimento.
Gosto da Morte porque ela é o aniquilamento de todos nós; gosto da Morte porque ela nos sagra. Em vida, todos nós só somos conhecidos pela calúnia e maledicência, mas, depois que Ela nos leva, nós somos conhecidos (a repetição é a melhor figura de retórica), pelas nossas boas qualidades.
É inútil estar vivendo, para ser dependente dos outros; é inútil estar vivendo para sofrer os vexames que não merecemos.
A vida não pode ser uma dor, uma humilhação de contínuos e burocratas idiotas; a vida deve ser uma vitória. Quando, porém, não se pode conseguir isso, a Morte é que deve vir em nosso socorro.
A covardia mental e moral do Brasil não permite movimentos. de independência; ela só quer acompanhadores de procissão, que só visam lucros ou salários nós pareceres. Não há, entre nós, campo para as grandes batalhas de espírito e inteligência. Tudo aqui é feito com o dinheiro e os títulos. A agitação de uma idéia não repercute na massa e quando esta sabe que se trata de contrariar uma pessoa poderosa, trata o agitador de louco.
Estou cansado de dizer que os malucos foram os reformadores do mundo.
Le Bon dizia isto a propósito de Maomé, nas suas Civilisation des arabes, com toda a razão; e não há chanceler falsificado e secretária catita que o possa contestar.
São eles os heróis; são eles os reformadores; são eles os iludidos; são eles que trazem as grandes idéias, para melhoria das condições da existência da nossa triste Humanidade.
Nunca foram os homens de bom senso, os honestos burgueses ali da esquina ou das secretárias chics que fizeram as grandes reformas no mundo.
Todas elas têm sido feitas por homens, e, às vezes mesmo mulheres, tidos por doidos.
A divisa deles consiste em não ser panurgianos e seguir a opinião de todos, por isso mesmo podem ver mais longe do que os outros.
Se nós tivéssemos sempre a opinião da maioria, estaríamos ainda no Cro-Magnon e não teríamos saído das cavernas.
O que é preciso, portanto, é que cada qual respeite a opinião .de qualquer, para que desse choque surja o esclarecimento do nosso destino, para própria felicidade da espécie humana.
Entretanto, no Brasil, não se quer isto. Procura-se abafar as opiniões, para só deixar em campo os desejos dos poderosos e prepotentes.
Os órgãos de publicidade por onde se podiam elas revelar, são fechados e não aceitam nada que os possa lesar.
Dessa forma, quem, como eu nasceu pobre e não quer ceder uma linha da sua independência de espírito e inteligência, só tem que fazer elogios à Morte.
Ela é a grande libertadora que não recusa os seus benefícios a quem lhe pede. Ela nos resgata e nos leva à luz de Deus.
Sendo assim, eu a sagro, antes que ela me sagre na minha pobreza, na minha infelicidade, na minha desgraça e na minha honestidade.
Ao vencedor, as batatas!
(Marginalia – 19/10/1918)


PESQUISADOR DESCOBRE A CASA DE LIMA BARRETO


(André Luiz dos Santos)

O Professor André Luiz dos Santos, ao iniciar pesquisa para sua tese de mestrado em Literatura Brasileira, descobre a casa onde Lima Barreto morou dos 9 aos 21 anos.
Ao iniciar pesquisa sobre a obra do escritor Lima Barreto para sua tese de Mestrado em Literatura Brasileira, na UERJ, o professor André Luiz dos Santos tinha como proposta mostrar a influência do espaço da casa nos textos do escritor, que nasceu na cidade do Rio de Janeiro, em 13 de Maio de 1881. Entretanto, André Luiz, 29 anos, conseguiu bem mais do que isso. Durante a pesquisa, descobriu o sítio, na Ilha do Governador, onde o autor de “Triste Fim de Policarpo Quaresma” morou dos nove aos 21 anos. Até então, não havia nenhum registro do imóvel, que passou por reformas e fica dentro do Parque de Material Bélico da Aeronáutica (PAMB).
A figura da casa sempre teve uma presença marcante na obra de Lima Barreto que, em romances, contos, artigos e crônicas, publicados em livros e periódicos, retratou os costumes e o Rio de Janeiro do fim do século XIX. As constantes trocas de moradia podem ter contribuído para isso. Até mudar-se para o Sítio do Carico, na Ilha do Governador, o menino Afonso Henriques de Lima Barreto já tinha passado por outras sete casas. Nascido na Rua Ipiranga, em Laranjeiras, Lima Barreto morou, ainda, no Flamengo, Centro, Boca do Mato, Catumbi, Santa Teresa e, novamente, no Centro, antes de chegar à ilha.
O ambiente tranqüilo da Ilha do Governador, que na passagem para o século XX ainda era uma área rural, produtora de lenha, cal, frutas e vegetais, ficou registrado em alguns dos 17 livros de Lima Barreto. O escritor citava o bairro em crônicas e utilizava as peculiaridades locais em sua obra ficcional. “Ele emprestou as características das casas para romances como ‘Recordações do escrivão Isaías Caminha’ e ‘Triste fim de Policarpo Quaresma’”, explica André Luiz, que também mora na Ilha.

A DESCOBERTA

Descobrir a casa onde Lima Barreto viveu parte da infância e a adolescência não foi tarefa simples. A partir de mapas do Arquivo Geral da Cidade datados de 1906, André Luiz conseguiu identificar onde ficava o Morro do Carico. “As indicações eram de que a casa ficava na encosta, onde hoje está instalado o Parque de Material Bélico”, conta o professor, cuja pesquisa foi apoiada pela FAPERJ. Depois de muito insistir com o comando do PAMB, em 1998, André Luiz conseguiu permissão para entrar no local. “Tive certeza da descoberta ao comparar a vista da casa com a foto publicada na contracapa de “Marginália”, volume de artigos e crônicas editado em 1956. Apesar das reformas feitas na parte externa, as árvores ao redor da casa, o pântano e o riacho que passa no terreno não deixam dúvidas sobre a origem do imóvel.”
O Sítio do Carico, como era chamada a propriedade, foi citado em crônicas como “Homem ou boi de canga?”, publicada no periódico ABC, em 29 de Maio de 1920; e em “O Estrela”, publicada quatro anos antes, no Almanaque D’A Noite. Em “Triste fim de Policarpo Quaresma”, o Carico era chamado de Sítio do Sossego. Impressionada com o achado, a atual diretoria do PAMB resolveu inaugurar no local uma placa alusiva.
Feita a descoberta, o atual desafio do pesquisador André Luiz é conseguir o tombamento da construção número 32 da Rua Major Mascarenhas, em Todos os Santos, onde o escritor morou até morrer, em 1922. Antes, Lima Barreto morou na Rua 24 de Maio, no Engenho Novo; e na Rua Boa Vista 76, hoje Rua Elisa de Albuquerque, também em Todos os Santos. Esta última ficou conhecida no local como a casa do louco, devido aos gritos do pai, João Henriques de Lima Barreto, que em 1902 enlouquecera. “A Casa do Louco” dá título à tese de André Luiz.

VIDA MARCADA POR DIFICULDADES

Segundo dos cinco filhos de uma família pobre - o irmão mais velho morreu ainda recém-nascido - Afonso Henriques de Lima Barreto teve a vida marcada por revezes. A biografia do autor de “Clara dos Anjos” conquistou o professor André Luiz dos Santos. “Sempre pensei em escrever sobre um autor que tivesse dificuldades para fazer seu trabalho”, explica.
E não foram poucas as agruras enfrentadas pelo escritor. Logo aos seis anos, Lima Barreto perdeu a mãe, Amália Augusto Barreto, com quem começara a estudar. A dor da ausência da mãe está registrada no “Diário Íntimo”, publicado em 1953, 31 anos após sua morte. No livro, Lima Barreto conta que entregava a pequena mesada que recebia do pai a uma mendiga da Rua do Resende, de quem recebia colo e carinho.

LIMA BARRETO

Aluno do Liceu Popular Niteroiense, Lima Barreto bacharelou-se em Ciências e Letras, cujo curso foi custeado pelo Visconde de Ouro Preto, seu padrinho. O escritor chegou a iniciar o curso de Engenharia na Escola Politécnica do Rio de Janeiro, mas em 1902, a doença do pai, que enlouqueceu, impediu que ele continuasse os estudos, pois tinha que ajudar a sustentar os três irmãos mais novos.
No ano seguinte, Lima Barreto começou a trabalhar na Diretoria de Expediente da Secretaria da Guerra. Paralelamente, passou a colaborar em diversos jornais e periódicos cariocas. Em 1905, atuou como jornalista profissional no Correio da Manhã. Quatro anos mais tarde, seu primeiro romance, “Recordações do escrivão Isaías Caminha”, foi lançado em Lisboa. Apesar da atuação na imprensa, o escritor nunca conseguiu independência financeira. Acumulou dívidas para editar sua obra e sempre teve dificuldades para sustentar a família. Mulato, teve de enfrentar, ainda, a discriminação racial.
Lima Barreto foi derrotado duas vezes nas eleições para a Academia Brasileira de Letras. Inscrito pela terceira vez, acabou desistindo. Nos últimos anos de vida levava uma vida boêmia e lutava contra problemas de saúde. Em 1914, for internado em um hospício. Dois anos depois, doente, foi obrigado a interromper, por alguns meses, suas atividades profissionais e literárias. Em 1918 aposentou-se por invalidez e, em 1º de Novembro de 1922, morreu de colapso cardíaco.

"Em geral, os homens notáveis do passado são admirados e prezados, não pelo que afirmaram peremptóriamente, mas pelo que supuseram".

(Barreto, Lima. Diário Íntimo – pág 82. 2ª Edição – Editora Brasiliense – sp - 1961)


Foto de Lima Barreto, provavelmente de 1919, já doente.


FONTES DE PESQUISA:

- Barreto, Lima. Diário Íntimo - Editora Brasiliense - SP - 1961;
- Bose. Alfredo - História Consisa da Literatura Brasileira. São Paulo. Editora Cultrix - 3ª Edição - 1997;
- Barbosa, Francisco de Assis - A Vida de Lima Barreto. São Paulo. Editora Itatiaia Ltda & Editora da USP - 7ª Edição - 1988;
- Beiguelman, Paula - Por que Lima Barreto - São Paulo. Editora Brasiliense - 1ª Edição - 1981;
- Lins, Osman - Lima Barreto e o Espaço Romancesco - São Paulo - Editora Ática - 1976;
- Barreto, Lima - Literatura Comentada - São Paulo - Editora Abril Cultural - 1980.

quinta-feira, 20 de março de 2008

A CRÍTICA DE SÉRGIO MILLIET AOS ARTISTAS PLÁSTICOS DA SAM DE 22

MINHA PRIMEIRA ANÁLISE-CRÍTICA SOBRE OS ARTISTAS PLÁSTICOS PRESENTES NA SEMANA DE 22

Sérgio Milliet


Marthe, minha amiga, não sei se você recorda das palavras cruéis que eu tinha outrora para com a arte brasileira, e ainda no ano passado, a propósito da prudência e da frivolidade de nossos artistas.
Agora sou obrigado a desmentir-me e a voltar atrás. Passei a fazer parte do regimento daqueles que ainda acreditam na banalidade dos provérbios, ao assegurar-me da verdade de um deles. Os dias se sucedem... La Palisse não teria melhor dito essa imensa verdade. No entanto, cara amiga, é necessário meditar de vez em quando sobre essa verdade conhecida. Em São Paulo, há apenas um ano, alguns artistas trabalhavam na calma dos ateliês e dos quartos isolados conscientes de seu valor porem certos de serem esmagados pelo grande número de seus adversários no momento em que se ousassem mostrar.
Alguns artistas!
E eis que repentinamente esses artistas concitam outros desconhecidos e à força de coragem e de perseverança conseguem esta coisa surpreendente: dar a São Paulo, a cidade do café, a cidade nouveau riche, saraus, de arte moderna.
E todas as artes estão ali representadas, Marthe: a escultura, pintura, música, literatura e até a arquitetura.
Ah, minha amiga, este país é extraordinário, as artes se desenvolvem com o mesmo vigor e a mesma rapidez que as grandes árvores de troncos torcidos das florestas virgens. E quanto mais coisas eu não lhe diria ainda se não quisesse passar rapidamente em revista esta esplêndida manifestação.
Seria uma inverdade lhe dizer que o público aceitou as teorias que você conhece sobre a pintura, a poesia e a música. Ele vaiou, e mais ainda, cantou, berrou, manifestou-se ao longo do espetáculo. Os estudantes amontoados nas galerias do grande teatro, impediram freqüentemente a platéia de ouvir. Mas é necessário dizer também que esta concordava quase sempre tacitamente com as insanidades vomitadas pela falange acadêmica.
E foi então que se viu homens como Mário de Andrade, Ronald de Carvalho, e outros distinguir-se pela sua coragem tranqüila e pela sua fé.
Foi uma espécie de premiere de Hernani, brilhantemente realizada. Mário de Andrade, o poeta de “Paulicéia Desvairada” e Ronald de Carvalho, o autor de “Epigramas” mostraram-se sublimes. O primeiro, com sua magnífica cabeça calva, explicando sob as vaias e os sarcasmos as teorias da arte moderna e afirmando com uma voz forte e, meio aos gritos “os velhos morrerão, senhores”, o segundo, aristocrata do pensamento, respondendo com humor e educação às pilhérias da assistência.
Entremos juntos no hall do Grande Teatro e admiremos um pouco da exposição.
Eis, da esquerda para a direita, antigo discípulo de Hodler, que nos apresenta telas de um colorido vigoroso e de um simbolismo místico, simples e duro e ingênuo. O melhor exemplo disso é a “Descida da Cruz”. Nas paisagens e nas naturezas mortas essa mesma rudeza de expressão, que é um dos princípios de Holdler. “Paisagem de Espanha” é um belo quadro.
Zina Aita, do Rio de Janeiro, bizarra mais que original, apreciando a cor sobretudo e moderna sobretudo nisso uma vez que ela conservou um certo realismo no desenho que não é de bom quilate.
Algumas telas de interpretações rebuscadas não me fazem mudar de opinião.
Anita Malfatti, vigorosa e audaciosa, e inteligente.
O Homem Amarelo, o Japonês, Paisagem à Beira Mar, são puras obras primas. Seu desenho concentrado e seu colorido sóbrio a tornam o melhor pintor da exposição.
Citemos ainda da mesma artista alguns retratos interessantes e uma “Índia” de sua última fase que assinala a evolução definitiva de Anita Malfatti para uma pintura de interpretação sintética.
Di Cavalcanti, do Rio de Janeiro, cujas últimas obras são muito pessoais e modernas, lembrando algo o método empregado por Frans Masereel em “Souvenirs de Londres”, Masereel que porém não conhecia antes de minha chegada, errou ao expor telas antigas. É claro que eu as aprecio assim mesmo, mas há entre elas duas ou três que são pintura antiga, claro- escuros e telas mais ou menos impressionistas, seja enquanto fatura, como pela própria interpretação do assunto.
Pode-se ainda apreciar seu talento de ilustrador em alguns desenhos de um belo movimento.
Rêgo Monteiro, do Rio, também apresenta números quadros que podem ser divididos em dois grupos: aquele das telas impressionistas e mesmo as telas pontilhistas, entre as quais é preciso notar “Baile do Assírio”, quem interpreta o movimento de uma ronda de máscaras dançando sob serpentinas e confetes. Um turbilhão de cores cujo centro é o ponto luminoso. E aquele das telas cubistas que marca a evolução do pintor no sentido da pintura intelectual.
Ferrignac, com um só quadro, uma natureza morta dadaísta. É a extrema esquerda do movimento paulista.
A escultura, admiravelmente representada pelo gênio Brecheret, de um estilo que lembra Mestrovic (no original Mestrovitch), nos dava a oportunidade de apreciar as estatuetas de Haarberg, um escultor bastante jovem e quem não falta talento.
Brecheret revela-se um grande escultor, um gênio da raça latina, digno de suceder a Rodin e Boerdelli (no original, Bouraine) e também um admirável poeta pela sua extraordinária imaginação. Marthe, eu gostaria de poder lhe mostrar seu monumento às bandeiras que é por assim dizer a epopéia da arte brasileira e o mais belo canto de sua poesia. É o quadro poderoso da conquista do Brasil pelo aventureiro povo paulista, à procura do ouro e dos escravos índios, a ambição desmedida e nostálgica dos descendentes dos gloriosos portugueses da grande época, a necessidade de conquistar e de denominação. Imagine, para traduzir essa grande idéia, um impulso formidável de corpos torcidos, músculos, sofrimentos, desesperos e entusiasmos através da floresta virgem, das febres e as guerras e a natureza hostil. Tudo isso sem uma só frase, um só artifício, sem uma imagem já vista. Imagine tudo isso e você terá uma idéia da arte de Brecheret.
Quanto a arquitetura podemos admirar os templos de Móya e as casas de campo de Przyrembel (no original, Przembel).
Você certamente já ouviu falar de Villa Lobos, minha amiga, pois suas obras foram executadas em Paris com sucesso (ver Nouvelle Revue Musicale). Trata-se de um compositor vagamente enfeudado ao grupo dos “Seis”, porém ainda com alguma coisa de Debussy, assim mesmo o maior músico do Brasil. Naturalmente ele era ainda completamente desconhecido no país dos cafeicultores.
Muito bem executada, suas obras obtiveram uma consagração definitiva da elite e foram estrepitosamente vaiadas pela grande maioria do público.
A notar seu “Trio” (1916), cujo andante é muito pessoal, as “Danças Africanas” (Kankukus e Kankikis) e o “Terceiro Quatuor” (instrumentos de corda-1916) onde o scherzo satírico (pipocas e potocas) é uma pequena maravilha de verve e o adágio um belo trecho.
A música de Villa Lobos é uma das mais preferidas manifestações da alma brasileira. Feita de melancolia e de humor, ela traduz aquilo que caracteriza esse povo jovem vindo de um povo triste. A linha melódica infinitamente variada desconsertou o público. Villa Lobos não desenvolve uma frase. Ele sintetiza e seu espírito plana sobre o mundo das sensações que ele exprime à maneira de um Massereel em pintura.
O público hostil e refratário diante da calma olímpica dos artistas sentiu-se, ao final, perplexo.
Eis ai, minha cara amiga, uma carta um pouco longa. Não quero mais tomar seu tempo por hoje. Assim sendo só falarei da jovem vigorosa literatura brasileira na minha próxima carta.
Beijo suas mãos com ternura
Serge Milliet

(Artigo publicado na revista Lumiere de Antuérpia, nº 7 a 15 de abril de 1922. Tradução de Walter Zanini e Joset Balsa).

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A PRIMEIRA CRÍTICA AOS PINTORES DA SEMANA, FEITA POR SÉRGIO MILLIET, É AVALIADA POR WALTER ZANINI.

SÉRGIO MILLIET E A SEMANA

A pesquisa das artes plásticas na Semana de Arte Moderna em pouco ou nada enriqueceu nos últimos anos, a matéria já largamente conhecida. Não são raras entretanto as interrogações que permanece no ar, motivadas quer pela incipiente relação das obras no catálogo, quer, pela incerteza do comparecimento de artistas mencionados em notícias dos jornais que cobriam o evento e a dispersão de muitos dos trabalhos expostos. Tais dificuldades sempre criaram embaraço para as tentativas de reconstituição completa da primeira manifestação coletiva de arte moderna realizada no País. É óbvio, porém, que o que se conseguiu reunir em torno da Semana tem sido mais do que suficiente para a sua avaliação. O que ainda se puder acrescentar certamente não será de maior monta.
Isto não significa que a recuperação de algum documento não possa contribuir com novos esclarecimentos sobre a natureza do envio dos artistas. A esse respeito, o artigo “Une semaine d’art moderne à São Paulo”, se Sérgio Milliet, inserido na revista “Lumiére”, de Antuérpia”, a 15 de abril de 1922, é exemplar trazendo algumas informações (ao lado da apreciação crítica) que são tanto mais valiosas por emanarem de uma testemunha ocular da mostra.
Anteriormente já havíamos citado o artigo e incluído um trecho no catálogo da exposição de Vicente do Rêgo Monteiro (MAC-USP, nov-dez. 1971). Cecília de Lara, por sua vez, reportou-se a ele em breve comentário no artigo “Klaxon e Lumiere”, publicado na revista “Caravelle”, nº 25, de 1975 (Faculté des Lettres de Toulouse). Mas é esta a primeira vez que se dá ampla divulgação ao mesmo.
Escrevendo em francês, como o fazia então, e assinando Serge Milliet, o crítico endereça o artigo, em forma epistolar, a “Marthe, mon amie”. Confessa-se impressionado com a súbita melhora da arte no Brasil, o que o obriga a desmentir sua própria opinião anterior, quando manifestava seu desagrado diante da “prudência” e da “frivolidade” dos artistas locais. Ele acrescenta: “Em São Paulo, há apenas um ano, alguns artistas trabalhavam na calma dos ateliês e quartos isolados, conscientes de seu valor, porém certos de serem esmagados pelo grande número de seus adversários no momento em que ousassem mostrar”.
Entusiasmado, Milliet diz que de repente esses artistas concitam outros seus colegas desconhecidos e que “à força de coragem e de perseverança conseguem esta coisa surpreendente: dar a São Paulo, a cidade do café, a cidade nouveau riche, saraus de arte moderna. Vai ainda mais longe ao afirmar que “este país é extraordinário” e que “as artes desenvolvem com mesmo vigor e a mesma rapidez que as grandes árvores de troncos torcidos das florestas virgens”.
O relato a seguir faz os acontecimentos da Semana, aqui traduzido e reproduzido na íntegra, é rápido e objetivo e confirma o que sabemos por outras fontes. Menciona a reação ruidosa do público e transcreve palavras ditas por Mário de Andrade à platéia enfurecida: “os velhos morrerão, senhores”, contrastantes com a forma polida das respostas do aristocrata Ronald de Carvalho. Mais adiante ele dirá o melhor possível da música de Villa Lobos (“feita de melancolia e humor”), tratando do compositor “vagamente enfeudado ao grupo dos Seis”, em todo o trecho final de seu escrito. Mas no cerne do texto está a exposição de artes visuais, o que aqui nos interessa mais.
Das observações que alinhava, para nós talvez as mais sugestivas sejam aquelas sobre Di Cavalcanti, uma vez que lança uma nova luz a respeito do pintor num momento de sérias vacilações, às vésperas da Semana. O paralelo que se traça entre ele e o belga Franz Masereel, artista de uma composição organizada por robusto traços expressionistas, é significativo. Diz Milliet: “Di Cavalcanti, do Rio de Janeiro, cujas últimas obras são muitos pessoais e modernas, lembrando algo do método empregado por Frans Masereel em “Souvernirs de Londres”, Masereel que entretanto ele não conhecia antes de minha chegada, errou ao expor telas antigas”. Declara apreciá-las, mesmo assim colocando dúvidas em “duas ou três que são pintura antiga, claro-escuros e telas mais ou menos impressionistas, seja enquanto fatura como pela própria interpretação do assunto”. Louva-o ainda como ilustrador “de alguns desenhos de um belo movimento”.
Por entre a audácia de expor, eis pois o receio de um dos principais protagonistas da Semana em mostrar obras mais avançadas. Sabemos, que a presença de Di Cavalcanti não chegou a ter a forma de pequena retrospectiva, como ocorreu com a de Anita Malfatti. Suas obras eram em técnicas várias e uma produção mais recente demonstrava alguma influência do cubismo e do futurismo, como se constata na ilustração que preparou para o rosto do catálogo (apresentado com planos de fundo arredondados que lembram o quadro “O Beijo” do MAC-USP). O penumbrismo das figuras espectrais era algo do passado mas ele o acabou levando para a exposição. Seus últimos trabalhos, os que Milliet aproxima de Masereel - e que certamente trariam maior força à sua participação – ficaram entretanto lamentavelmente de fora.
O texto de “Lumiere” é quase sempre encomiástico. Quando trata de Anita, a afirma “vigorosa e ousada, e inteligente”. Considera “O Homem Amarelo”, “O Japonês” e “Paisagem à beira-mar” como obras-primas. “Seu desenho concentrado e seu colorido sóbrio a tornam o melhor pintor da exposição”. Milliet cita “Indienne” como um exemplo da última fase da precursora (influenciada pelo ideário nacionalista) “que assinala a evolução definitiva de Anita Malfatti para uma pintura de interpretação sintética”. Em verdade, Anita estava também presa às vacilações, embora seus novos esforços em 1921. Sua presença na Semana era um rebatimento da mostra de 1917-18 acrescentada de peças recentes em que se diluíra consideravelmente a força do seu expressionismo. Não é aqui o lugar para outras verificações do declínio de Anita. Sérgio Milliet via uma evolução na obra apontada (desconhecida, mas que podemos aproximar de outras com o mesmo tema), quando o certo seria falar de regressão.
Outro comentário é aquele a respeito, de Vicente do Rêgo Monteiro. Milliet confirmou na Semana a presença de “telas cubistas que marcam a evolução do pintor no sentido da pintura intelectual”. Essas obras, as últimas relacionadas no catálogo de 1922, encontram-se dispersas ainda hoje mas o testemunho explícito do crítico é suficiente para confirmar uma preocupação estética que penetrava o Brasil também pelo interesse do pintor pernambucano. Nota-se a insistência nessa novidade do artista em Ronald de Carvalho que se referiu aos “cubismos da Semana” em carta a René Thiollier. VRM, cujo desenvolvimento revelaria uma grande organicidade de linguagem, estava a um passo das soluções da fase parisiense dos anos 20, como nos damos conta vendo suas “lendas brasileiras” e a série de retratos da época, todos de uma estrutura caracterizada pelo alongamento e a depuração das formas, inclinadas à sugestão do relevo.
Sérgio Milliet dedica linha muito elogiosas a Brecheret, fazendo assim coro com o que do escultor pensam os demais modernistas (e mesmo não modernistas). Acredita-o um sucessor de Rodim ou de Bourdelle, mas não se detém ao exame das peças expostas na SAM, ao deslocar sua atenção para o projeto do “Monumento às Bandeiras” que descreve com força poética.
As demais apreciações dizem respeito a outras participações conhecidas, não satisfazendo a expectativa dos que ainda esperam a confirmação da presença de algum nome na SAM. Registra longamente a participação de John Graz, com suas “telas de um colorido vigoroso e de um simbolismo místico, simples e duro e ingênuo”, considerando “A descida da cruz” (que não consta no catálogo) como a melhor de suas obras expostas. Apesar de conhecer de há muito o pintor de Genebra - cidade onde Sérgio estudara - ele o diz “antigo discípulo de Holdler”. Graz, contudo, nunca freqüentara o mestre expressionista, embora revele sua influência.
Sua apreciação é menos positiva quanto a Zina Aita, que se colocava entre os brasileiros já experientes da Europa, antes de 1922, considerando-a “bizarra mais que original” - no que está certo. Há ainda um lugar comum sobre Haarberg, “um escultor bastante jovem e a quem não falta talento”. Cita finalmente Ferrignac que apresenta “natureza-morta dadaísta”, situando-a na “extrema esquerda do movimento paulista”. Pelo que se conhece de Ferrignac nada faz crer que o quadro “Natureza dadaísta”, exibido na Semana, tenha algo a ver com a natureza do título. A afirmação de Milliet, esclarece que se trata de uma “natureza-morta”, informação a que acrescenta a frase acima, aliás de difícil entendimento. Não há outras referências a artistas, salvo aquelas sobre os arquitetos, tratados laconicamente: “Quanto à arquitetura, pudemos admirar os templos de Moya e as casas de campo de Przyrembel (ortografia corrigida)”.
O tom descritivo, leve e laudatório permeia todo o comentário, mostrando o jovem crítico em suas primeiras tentativas de abordagem de artistas que se filiam às correntes modernas e às quais continuará a dar seu apoio no longo futuro. Também a sensibilidade musical aparece, nas considerações das peças de Villa Lobos. Serge Milliet transmitia assim sua mensagem sobre a SAM ao público europeu através de uma revista de cultura ligada aos modernistas. Nela publicaria novo texto, meses depois, desta vez sobre a literatura moderna no Brasil.


(Walter Zanini – Artigo publicado no Suplemento “Cultura”, de O Estado de S. Paulo – Pág. 6 – Ano II – N.º 88)

segunda-feira, 10 de março de 2008

URARIANO MOTA: PATRÍCIO DE MANUEL BANDEIRA FALA SOBRE MANUEL BANDEIRA

CENTO E VINTE ANOS DE BANDEIRA
Urariano Mota*

No livro ideal em que Manuel Bandeira realizaria a ordem da sua obra, ela partiria da "vida inteira que poderia ter sido e que não foi", para outra vida que viera ficando "cada vez mais cheia de tudo". Esta seria a ordem ideal do grande livro, o da vida e poesia de Bandeira, segundo o crítico Otto Maria Carpeaux.
(E o leitor perdoe se aqui e ali estas linhas, que gostariam da fria racionalidade, cederem o passo à emoção.)
Na ordem ideal de Carpeaux, Bandeira começaria por

"PNEUMOTÓRAX
Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.
A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.
Mandou chamar o médico:
- Diga trinta e três.
- Trinta e três... trinta e três... trinta e três...
- Respire.
...................................................................
- O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.
- Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
- Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino."
E depois de espirais e crescendos, atingiria
"CANÇÃO DO VENTO E DA MINHA VIDA
O vento varria as folhas,
O vento varria os frutos,
O vento varria as flores...
E a minha vida ficava
Cada vez mais cheia
De frutos, de flores, de folhas.
O vento varria as luzes,
O vento varria as músicas,
O vento varria os aromas...
E a minha vida ficava
Cada vez mais cheia
De aromas, de estrelas, de cânticos.
O vento varria os sonhos
E varria as amizades...
O vento varria as mulheres...
E a minha vida ficava
Cada vez mais cheia
De afetos e de mulheres.
O vento varria os meses
E varria os teus sorrisos...
O vento varria tudo!
E a minha vida ficava
Cada vez mais cheia
De tudo."

É uma grande ordem, reconheçamos. Queremos dizer, a vida que gerou essa ordem é uma vida fecunda, apesar da tuberculose do poeta, apesar da sua vida de solteirão, e por causa mesmo dessa particular vida, uma particular obra, reconheçamos. Mas a ordem do grande livro de Bandeira, para os leitores, não precisa ser a ordem que lhe deu a melhor crítica literária. A nossa ordem particular, a nossa bandeira, o nosso Bandeira é uma viagem íntima com os poemas que nos derrubaram desde quando éramos adolescentes. E nos dizíamos, surpresos, então isto é poesia. E por isto mesmo, por força dessa revelação, passamos a louvar e a ser amantes da poesia.

"PORQUINHO-DA-ÍNDIA
Quando eu tinha seis anos
Ganhei um porquinho-da-índia.
Que dor de coração me dava
Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão!
Levava ele pra sala
Pra os lugares mais bonitos, mais limpinhos,
Ele não gostava:
Queria era estar debaixo do fogão.
Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas...
- O meu porquinho-da-índia foi a minha primeira namorada."

A parte que vem do coração, a parte que vem da só razão, assaltam, parecem entrar em conflito, esse terreno é meu, esse terreno é seu. A parte do coração nos diz e nos ordena, "fala, desgraçado, não temas o cair no ridículo!". A parte do coração nos diz que este último verso, "o meu porquinho-da-índia foi a minha primeira namorada", nos derrubou e nos tomou em um dia e uma tarde no subúrbio de Água Fria. E escrever isto ainda é meio mentir. Queremos dizer, aos 17 anos este verso nos remeteu de imediato à primeira namorada, em um deserto de amor naqueles inesquecíveis e que o diabo os carregue tempos. E como era próprio esse verso, ao fazer de um roedor, de uma cobaia, a primeira namorada de um amante das areias sem oásis. E quem sabe mesmo se Delma, Elma, Alma, não importa o nome, quem sabe mesmo se não era uma cobaia da experiência, da inexperiência do amor, uma namorada aos 8 anos na lembrança de um jovem? Um sentimento que ruge, que rói, mói e dói num desassossego sem rumo. Ah, noites escuras, malditas noite em claro e vazias de subúrbio. Isto fala o coração que reflete esse verso.
A parte que vem da razão nos diz que por trás dessas linhas existe um bruxo, existe um homem experiente na arte de criar um poema, este ser feroz porque fere porque é poesia. Talvez, para não ficarmos a falar de gregos macedônios no planeta de Assurbanípal, talvez fosse melhor dizer o que é mesmo esse grego macedônio no planeta de Assurbanípal que chamamos de poesia. Se restringimos para o caso do Porquinho-da-índia, sabemos já a resposta. Assim, olhando para o poema e dizendo o que ele é, dizemos: - Poesia é o escrito que nos emociona em poucas linhas. Viram o Porquinho-da-índia nisso? Ele correu, se furtou arisco. Tentemos pegá-lo. (E pegar poesia é um pouco pegar um roedor rápido.) Tentemos. Poesia é o que nos retira a vergonha da comoção. Escapou, fugiu. Tentemos de novo. Poesia é o que retira da gente a humanidade escondida. Passou raspando, o danado. Agora, com as duas mãos e corpo inteiro abracemos. Poesia é o Porquinho-da-índia. Pegamos o condenado! Mirem, vejam, reflitam e meditem sobre esse poema que cresce pelo pequeno, pelo minúsculo, pelos diminutivos: porquinho, seis anos, bichinho, limpinhos, ternurinhas, até explodir no inusitado, no súbito golpe, no absurdo da relação entre uma cobaia e o amor, "o meu porquinho-da-índia foi a minha primeira namorada".
Uma sombra passou perto agora. Ela nos diz, ela não quer esperar, ela nos sopra: esse pernambucano tem uma voz e uma percepção aguçada, esse poeta possui um espírito muito fino. Há um modo pernambucano na sua expressão. Há um gosto na palavra, uma disposição das palavras, uma ordem e escolha das palavras que vão além do bichinho arisco que corre e se esconde. Vejam, Porquinho-da-índia é um poema escrito antes de 1930, mas um verso diz, "Levava ele pra sala". Isso até então não era poesia nem português. Até hoje, em 2006, os gramáticos de boa fama condenam quem usa "levava ele". Levava-o, corrigem, e vamos todos ser idiotas na felicidade da norma culta. Levava-o, para o inferno. E nada mais antipoético que um "levava ele", sentenciariam os asnos, de 1930 a 2000 e vindouros.

"POÉTICA
Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor.
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas.
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo.
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc.
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare.
- Não quero saber do lirismo que não é libertação.".

Os ótimos poemas, os bons poetas, os grandes criadores prescindem de comentário. O que deles se disser, já estará melhor dito no próprio objeto criado. O comentarista é um chato, um atrevido, um pretensioso, um mui digno representante da família Equus asinus. O máximo que poderemos pretender diante de um manifesto como Poética é falar à margem, rodear o capim, e mostrar nossos dentes cavalares para os semelhantes, a zurrar, mira, eu entendo esta ração assim. O sensato seria divulgar, divulgar e divulgar um poema que amamos, para com isto realizar o nosso homem civilizador. Para que todos gritem, em uma só voz, eu não quero mais saber do lirismo que não é libertação.
Por isto esta sombra a nosso lado, que é louca, mas não é estúpida, nos diz: fica à margem, não tentes pegar o poema pelo rabo, porque a poesia é um animal arisco veloz e escorregadio. Diz o que te sugere o poema e serás menos infeliz. Por isto o coração nos diz:
Não quero mais, nunca mais quero saber do lirismo que não é libertação. (Lembro o Gordo, e esta será uma sina, sempre lembrar o Gordo, lembro o Gordo no bar A Portuguesa, pela madrugada, num raro momento cívico. Bêbado, mais que bêbado, o Gordo se levantou e com as mãos para trás começou a cantar em voz alta: "Salve ó terra dos altos coqueiros, de beleza soberbo estendal. Nova Roma de bravos guerreiros, Pernambuco imortal, imortal". Os bêbados todos no imenso bar, os vizinhos, os garçons todos se perfilaram e começaram todos a cantar em uma só voz o hino de Pernambuco. Aquilo, naquela ditadura policial em que vivíamos, foi um momento de lirismo que liberta.) Por isto, a parte da razão nos diz: Bandeira é autor de versos que atingiram aquele estado raríssimo de ir além do gosto da gente culta. Viraram quase uma reflexão, um anexim, um provérbio. Exemplos disso vêm à razão, sem muita pesquisa: "A única coisa a fazer é tocar um tango argentino", ouvimos, quando nada mais resta fazer. "Foi o meu primeiro alumbramento", e vejam que palavra bela, alumbramento, posta em circulação e moda na língua. Todos apreendemos de imediato o significado, porque o poeta nos diz isto depois de "Um dia eu vi uma moça nuinha no banho/ Fiquei parado o coração batendo". Assim como também apreendemos pelo poema o sentido de "Vou-me embora pra Pasárgada" - sentido de fugir, sumir, buscar abrigo em uma terra utópica de felicidade. "Tenho tudo que não quero... vida noves fora zero".
Essas coisas não caem por dom ou presente. Versos assim se conseguem ao longo de muita vida e estudo e observação. Em Itinerário de Pasárgada, livro fundamental de sua formação e poética, aqui e ali Bandeira nos deixa pistas:
"Antes de conhecer o manual de Castilho, eu embatucava diante de certos problemas. De uma feita fui, muito encalistrado, perguntar a meu tio Cláudio se 'Vésper' rimava com 'cadáver'. A sua resposta negativa me inutilizou um soneto. Hoje vejo que quem tinha razão era o meu ouvido. Rima é igualdade de som. Tanto se rima consoantemente como toantemente e de outras maneiras. Só muito mais tarde vim a saber que os ingleses rimam 'be' com 'eternity'. Vim a saber que afinal a aliteração nada mais é do que uma rima de fonemas iniciais. Mas eu nada sabia de trovadores, nada conhecia da poesia espanhola... Devo dizer que aprendi muito com os maus poetas. Neles, mais do que nos bons, se acusa o que devemos evitar. Não é que os defeitos que abundam nos maus não apareçam nos bons. Aparecem sim. Há poemas perfeitos, não há poetas perfeitos. Mas nos melhores poetas certos versos defeituosos passam muita vez despercebidos".
É certo que todo verso é "produzido", trabalhado, moído. Mas a linha no verso de Bandeira parece vir curtida, decantada, palavra por palavra. Raro ele corre em vôo livre de condor, antes plana, paira, na altura, contraditoriamente parecendo voar baixo, ao nível do chão. Do cotidiano, do minúsculo dos dias. Nele raro se vê o processo de livre associação, supondo que isso ocorra em um poema inteiro, inteiriço, que vem à luz. Queremos dizer, e contamos para isto com a boa vontade da compreensão de quem nos escuta, o seu verso não se derrama, não se espraia. O sentido geral do poema está antes no verso, o sentido geral do verso está antes em cada palavra. Isto poderia ser dito de todos os poetas, diz-nos uma invencível voz da contradição. A nossa resposta, o caminho que estamos procurando diz: vejam por exemplo uma obra-prima, José, de Carlos Drummond de Andrade:

"JOSÉ
E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, Você?
Você que é sem nome,
que zomba dos outros,
Você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?
Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?
E agora, José?
sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio, - e agora?
Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?
Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse,
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é duro, José!
Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja do galope,
você marcha, José!
José, para onde?"
Se nos permitem uma heresia, afirmamos: nessa obra-prima os versos não sobrevivem sem o poema. Sem o conjunto de todo o poema. Se nos permitem mais uma (escrevemos ao fim de uma semana santa), Bandeira, se o escrevesse, se guardasse as mesmas palavras - impossibilidade extraordinária, encerraria esse poema na pergunta "José, e agora?". Com tanto "se", sabemos, é fácil escrever qualquer leviandade. Por isso mais adentramos, para que não nos digam, além de herético, embusteiro. Por isso dizemos, aquele verso lapidar, que sobrevive ao poeta, ao poema, à circunstância, não se encontra em outro poeta brasileiro com a freqüência com que se encontra em Bandeira. "A vida inteira que podia ter sido e que não foi" é um verso que nos fica, para sempre, é uma luz que guardamos sem nem preciso conhecer Pneumotórax. (Na verdade, perdoem-nos a franqueza bárbara, de Pneumotórax nem sentimos a falta.) "Terei a mulher que eu quero na cama que escolherei", e por isso "Vou-me embora pra Pasárgada", a isso retornamos sem que percebamos, como quem retorna a um mantra. Vejam se nos explicamos bem:

"O ÚLTIMO POEMA
Assim eu quereria o meu último poema
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação".

Qualquer verso desse poema, qualquer um, é um bem em si mesmo. Se isto é possível num gozo inteiro, cada verso é um momento de felicidade autônoma. E isto, e que se dane o hiato, e isto e nisto repete as circunstâncias da sua vida. Assim como a grafologia "explica" na letra hábitos do ser de uma pessoa, Bandeira refletia no poema a consciência da morte iminente. A vida se realizava em cada instante, como se fosse um breve independente, e o poema em cada verso, digamos assim, um pouco acima do afoito. A poesia, a criação, contra a morte próxima. Sabemos, claro, que isto deve ser assim para todo criador. Mas não com a urgência de Manuel Bandeira, ainda que tenha vivido 82 anos. Assim ele nos conta em Itinerário de Pasárgada:
"Quando caí doente em 1904, fiquei certo de morrer dentro de pouco tempo: a tuberculose ainda era a 'moléstia que não perdoa'. Mas fui vivendo, morre-não-morre, e em 1914 o dr. Bodmer, médico-chefe do sanatório de Clavadel, tendo-lhe eu perguntado quantos anos me restariam de vida, me respondeu assim: 'O senhor tem lesões teoricamente incompatíveis com a vida; no entanto está sem bacilos, come bem, dorme bem, não apresenta, em suma, nenhum sintoma alarmante. Pode viver cinco, dez, quinze anos ... Quem poderá dizer?' Continuei esperando a morte para qualquer momento, vivendo sempre como que provisoriamente".
Agora, em 19 de abril de 2006, os zeladores de efemérides apontam que o poeta completaria 120 anos. Se vivo fosse, acrescentam.
"....Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas...O meu porquinho-da-índia foi a minha primeira namorada"
Idiotas, os zeladores de efemérides não sabem. Nem imaginam que onde houver jovens em desassossego Bandeira continua a iludir a morte.

(*) "Urariano Mota é escritor, jornalista. Natural do Recife desde 1950. Autor do romance Os Corações Futuristas, que corre nos anos da ditadura Médici".
Fonte (autorizada pelo autor):

quinta-feira, 6 de março de 2008

CURIOSIDADE SOBRE A VIDA DE MANUEL BANDEIRA

NARRATIVA PITORESCA SOBRE
MANUEL BANDEIRA

Luiz de Almeida

Quando estamos arregimentando material para uma pesquisa já definida, deparamos com inúmeras dificuldades. Se as fosse narrar aqui estaria desvirtuando o objetivo do Blog e os do Projeto Retalhos do Modernismo. Mas é excitante estar diante de um amontoado de jornais, revistas e livros (estes repletos de clipes, marcadores de páginas, tiras de papel e até mesmo canetas), “tentando” interagirem, mesmo fora do planejamento, textos, contextos, frases dispersas, etc., e também “tentando” formalizar um diálogo entre eles, na maior parte das vezes, distintos. O trabalho requer uma parcela do princípio da intertextualidade. Quando pensa que está concluindo, encontra-se algo simplesmente espetacular - e o adicionamento é inevitável. Reinicia-se. Ou como diz o poviléu: “cumeça du cumeço travêis”. E foi assim que aconteceu com o artiguete que segue, pois quando já formatado, recebi via e-mail, na íntegra, o que possuía apenas a metade. Conclui. E, modestamente, até que não ficou um artiguete debilitadinho. Para os amantes do poeta Bandeira, como sou, uma pitada de conhecimento que não irá influenciar muito nos estudos da vida ou da obra do Manú, mas é um assunto que classifico como: um “causo” bem pitoresco. E, deixando de proemiar, eis o que interessa:

A PROPOSTA DE CASAMENTO DO PAI DE MANUEL BANDEIRA

Entre os papéis do arquivo pessoal do poeta Manuel Bandeira, parte substancial sob guarda na Casa de Rui Barbosa, figura o original manuscrito da carta que o pai do poeta, Manuel Carneiro de Souza Bandeira, que também assinava Manuel Bandeira, pede ao futuro sogro, o advogado e parlamentar Antônio José da Costa Ribeiro, a mão de sua filha Francelina Ribeiro (a Santinha), com quem haveria de casar-se logo depois, tendo sido o nosso querido poeta Manuel Bandeira o terceiro filho do casal, nascido em 1886, no dia 19 de abril, no Recife, na época Rua da Ventura, hoje Rua Joaquim Nabuco.

Também no arquivo está a certidão de batismo do poeta Bandeira, cerimônia essa realizada aos 20 de maio de 1886, na Matriz da Boa Vista, no Recife, tendo sido celebrante o Padre João José da Costa Ribeiro, então vigário da paróquia, e tio do poeta.

Manuel Bandeira chegou a conhecer seu avô Costa Ribeiro, e em sua obra há várias referências a ele e à sua casa da Rua da União, nº 263, na capital pernambucana, que ao menino parecia “impregnada de eternidade”. Uma referência importante que o poeta faz é no poema Evocação do Recife, inserido no livro “Libertinagem”. Importante ressaltar que o poeta voltou ao Recife em 1892, e foi residir na casa do seu avô, Costa Ribeiro. No livro “Itinerário de Pasárgada”, assim fala o poeta referindo-se àquela moradia da Rua da União:

- “Dos seis aos dez anos, nesses quatro anos de residência no Recife, com pequenos veraneios nos arredores – Monteiro, Sertãozinho de Caxangá, Boa Viagem, Usina do Cabo – construiu-se a minha mitologia porque os seus tipos, um Totônio Rodrigues, uma Dona Aninha Viegas, a preta Tomásia, velha cozinheira da casa de meu avô Costa Ribeiro, têm para mim a mesma consistência heróica das personagens dos poemas homéricos. A Rua da União, com os quatro quarteirões adjacentes limitados pelas Ruas da Aurora, da Saudade, Formosa e Princesa Isabel, foi a minha Tróade, a casa de meu avô, a capital desse país fabuloso”. (....) Quando comparo esses quatro anos de minha meninice a quaisquer outros quatro anos de minha vida de adulto, fico espantado do vazio destes últimos e cotejo com a densidade daquela quadra distante”.

Retornando ao objetivo deste artiguete: “a carta do pai do poeta pedindo a mão da ‘Santinha’, futura mãe do poeta”. A carta documenta também os hábitos da época, mostrando como era formal e cerimonioso o relacionamento entre o pretendente à mão da filha e o futuro sogro – formalidade que atualmente está completamente em desuso e, caso aconteça, é até motivo de zombaria.

Eis a carta na íntegra:

“Amº Dr. Costa Ribeiro

Recife, 12 de agosto de 1881

Venho roubar-lhe alguns momentos de atenção, mas espero, desculpar-me-á, pois tenho em vista ocupar-me de um assunto, que a nós ambos merece a mais subida consideração.

Há já alguns anos que sua filha mais velha inspira-me o mais vivo interesse e ter-me-ia já há muito tempo declarado ao Drs., se mo tivessem permitido minhas circunstâncias; mas muito moço em uma carreira, cujo tirocínio é árduo e penoso, temia ser mal recebido, pois eu mesmo não me julgava em condições de contrair um compromisso desta natureza.

Hoje porém que vejo em parte vencidas as primeiras dificuldades e que uma posição um pouquinho melhor permite-me uma vida relativamente mais fácil, animo-me a vir pedir o seu consentimento para oferecer a ela meu nome e meu futuro.

Espero ansioso sua resposta que terá a bondade de comunicar-me, qualquer que ela possa ser.

Aproveito a ocasião para manifestar-lhe os protestos de consideração e estima do
amº crº obrgº

Manuel Bandeira

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LEMBRETES IMPORTANTES:
1 – A mãe do poeta faleceu no Rio de Janeiro em 1916, um ano antes do poeta publicar seu primeiro livro “A Cinza das Horas”;
2 – O Pai do poeta faleceu no Rio de Janeiro em 1920, um ano após ter custeado o livro Carnaval, de autoria do filho poeta. Dois anos antes do falecimento do pai, Bandeira também viu falecer sua irmã Maria Cândida, a qual fora sua enfermeira deste 1904;
3 – Após o falecimento do pai, Manuel Bandeira muda-se da Rua do Triunfo para a Rua do Curvelo, n.º 53 (atualmente Rua Dias de Barros), tornando-se vizinho de Ribeiro Couto.

FONTES PESQUISADAS:
- Bandeira, Manuel. Estrela da Vida Inteira – Editora José Olympio – 15ª Ed. RJ/1988;
- _____. Libertinagem & Estrela da Manhã – Editora Nova Fronteira – 25ª Impressão – RJ/2000;
- Lopez, Telê Porto Ancona (Org.). Manuel Bandeira: Verso e Reverso – T.A. Queiroz, Editor – 1ª Ed. São Paulo, 1987;
- Moraes, Marcos Antonio (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira – Editora Edusp, São Paulo/2001;
- Jornal das Letras – Rio de Janeiro (recorte sem data).

(Este texto faz parte do Acervo da Biblioteca da Exposição Retalhos do Modernismo).

domingo, 2 de março de 2008

A EXPERIÊNCIA "FUTURISTA" SEGUNDO MÁRIO DE ANDRADE

MÁRIO DE ANDRADE E SUA SÍNTESE DO QUE FOI A “EXPERIÊNCIA FUTURISTA” BRASILEIRA.


O “Retalhos do Modernismo” conseguiu cópia do artiguete enviado por Mário de Andrade a Joaquim Inojosa, escrito três anos após a realização da Semana de Arte Moderna realizada no Teatro Municipal de São Paulo, nos dias 11 a 18 de fevereiro de 1922, onde Mário faz uma síntese do que foi a “experiência futurista” paulista e brasileira, salientando o sentindo nacionalista da “revolução artística” parida pela Semana de 22. Na ocasião, Joaquim Inojosa, o maior propagador das idéias modernistas no Nordeste Brasileiro, publicou o artiguete no Jornal do Comércio do Recife, em 24 de maio de 1925, com o título: “MODERNISMO EM AÇÃO”.
Atendendo aos objetivos do Projeto “Retalhos do Modernismo”, o referido artiguete foi inserido no Acervo da Exposição e: "para que haja possibilidade aos que não têm acesso à exposição Retalhos do Modernismo e sim ao Blog, edito o referido artiguete na íntegra".
Luiz de Almeida

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MODERNISMO EM AÇÃO

Todos os movimentos artísticos brasileiros têm sido agora de imitação. O Modernismo também. Se desde o princípio da guerra uma tendência modernizante já se denunciava aqui em São Paulo, principalmente com o aparecimento de Anita Malfatti (pintora) e de Brecheret (escultor), essa tendência no fim da guerra era um verdadeiro movimento, consciente de si mesmo, com franqueza já constituído no que se chama com certa impropriedade de igrejinha de elogio mútuo. Não acham impróprio? Pois é. É natural que um tangará não procure para companheiro de vida chupa-méis ou jundiaís. Procura tangarás. Que nos importava agora um ladainheiro que todas as manhãs começava com o seu: Santo Olavo Bilac rogai por nós? Fomos buscando pelas ruas os tipos da mesma família. Família de estourados, não? Ao menos é o que se diz por aí. Em 1919 já os estourados se sentiam bem fortinhos, graças a Deus. O muque crescia com o aumento do grupo e com os estudos. E o “box” principiou de verdade. Foi uma pândega. Um cortejo de exageros. Nossos e dos nossos inimigos. Apesar de tudo, essas tolices são bonitas. Principalmente porque tem muita sinceridade nelas. A gente se dá, se entrega a uma idéia e lá vai que nem cego, mundo fora até à morte ou à vitória. Vencemos? Me parece que sim. Ao menos este pensamento entrou na cabeça de todos os artistas da terra. Carece fazer qualquer coisa de novo.
O novo!... Esse foi o pensamento estético que nos agitou aqui durante a guerra. Onde estava o novo – lá? Lá fomos – que macacos! – buscar o novo nas Europas. E imitamos os “ismos” europeus. Duas coisas diferenciavam a nossa imitação das anteriores: imitávamos o presente não-orientação já fundada fazia muito; e, tal e qual o Romantismo, seguíamos uma tendência universal. Às vezes eu mesmo me revolto contra isso de chamar o nosso primitivo movimento modernizante de imitação. No seguir o estádio espiritual-universal da sua pátria época, tem muito mais uma necessidade fatal que uma simples macaqueação. E tanto é que se deu conosco essa coisa bonita de nós descobrirmos novidades que já estavam descobertas por artistas ainda ignorados por nós. Eu quando pude soletrar o alemão fui encontrar dentro dele as tendências estéticas da Paulicéia Desvairada escrita num tempo em que nem declinava “die Mutter”. Hoje sei dizer que essa palavra escura quer dizer a velha da gente e que os alemães são todos expressionismos e outros ismos europeus. Rapazes, a Europa é o nosso oriente. Dissolve!
Esse novo nós o levamos para o Rio de Janeiro no finzinho de 1921. Paulicéia foi lida por grupos mais adiantados de lá. E logo as amizades interestaduais se estabeleceram. E quando no ano seguinte Graça Aranha chegou da Europa conseguiu cimentar essa união com o entusiasmo e a natural grandeza que possui. Como o grupo modernista de verdade ainda fosse o de São Paulo, aqui ele organizou a famosa Semana de Arte Moderna em que fomos vaiados. Eu não digo isso com orgulho, não. Verifico uma verdade: fomos vaiados. E merecíamos. Nunca vi embrulhada tal. Todas aquelas manifestações diferentes sem uma explicação que lhes designasse o fundamento comum, naturalmente havia de azaranzar o público. Foi o que aconteceu... E fomos vaiados.
Eis em síntese o que foi a experiência “futurista” brasileira. Muita sinceridade, um entusiasmo sublime, uma vitalidade maravilhosa de mata virgem aí do norte e muita ilusão boba, muito idealismo coió, sem eficiência, muita temeridade sem coragem, muito pedantismo. Nada disso, nem mesmo as bonitezas apontadas justificam e honram um movimento coletivo. O que significa e vai honrar nosso movimento é a sua fase atual, evolução de certas tendências obscuras ainda naquele tempo porém já existentes nas primeiras obras que criamos. A principal delas é fazer uma arte de ação. Pode-se dizer que para nenhum modernista a arte é considerada como criadora de Beleza. Tem beleza em nossas obras, porém ela é apenas um meio de interessar e de chamar atenção para coisas mais úteis e práticas. E se não caímos no diletantismo essa arte por assim falar interessada que estamos criando é que vai determinar pela primeira vez enfim a psicologia integral do brasileiro. Abaixo a contemplação! Abaixo os poemas patrióticos que não reconheçam os defeitos da Pátria! O Brasil não carece de bonitezas. Faz poucos dias eu falava num discurso que “na porta do Brasil estava um papel em português errado: ‘- Precisa brasileiros’”. É isso mesmo. O Brasil tem tudo: secas cearenses, praga do café, lepra, política, barbeiro, patriotas(?), mulheres bonitas, baía da Guanabara, revoluções que não conseguem nunca vencer e o Amazonas. Tem até poetas, meu Deus! Só o que o Brasil não tem é brasileiros. Isso, nem lanterna de Diógenes encontra. Mas um sujeito erra na metrificação para fazer um soneto sobre a lanterna de Diógenes, isso possui aos milhares. Resolução: o único meio de sermos dignos é com o sacrifício de nós mesmos. E o sacrifício imediatamente começou. A nossa norma agora é de qualquer forma agir dentro naturalmente do nosso destino de artistas. Vamos ver no que isso dá.
Dentro dessa norma de arte-ação é que estamos construindo a nossa obra. Se lembram de que no princípio deste artigo falei na igrejinha de elogio mútuo? Pois acabou. Falei em imitação. Acabou também. Não tem dadaístas nem surrealistas nem futuristas nem expressionistas no Brasil. É possível que algumas vezes uma ou outra manifestação se pareça mais ou menos com o que se faz pela Europa, mas é simples coincidência de objetivos. Estamos com o espírito inteiramente voltado para o Brasil. E cada um realiza o Brasil segundo a própria observação. Assuntamos, matutamos e realizamos. O nosso atual movimento se caracteriza sobretudo nisto: abandonou o idealismo e é prático. Não se andam pregando coisas das bonitas, faz-se qualquer coisa. Arte nacionalizante, arte sexual, arte de pagodeira. Não se espantam. Arte de pândega. Brincamos com a arte. Pois não vale mais a pena brincar do que emprestar uma corneta de um museu e andar gritando: “Pátria, latejo em ti?” Vale. O brinquedo sempre socializa muito mais que uma sessão solene. E na liberdade do brinquedo se determinam inconscientemente muitas características de uma raça. Poder-se-ia escrever um livro sobre a psicologia das raças estudando-lhes unicamente os brinquedos nacionais.
Por isso nós também brincamos. Alegria nunca fez mal pra ninguém contanto que não se faça dela um preconceito. Oswald de Andrade, mesmo dentro dessa formidável pândega que é João Miramar tem páginas melancólicas. É na variabilidade surpreendida das nossas reações psicológicas que buscamos surpreender o brasileiro. E este aparecerá. Na língua, no amor, na sociedade, na tradição, na arte nós realizaremos o brasileiro. Todo sacrifício por esse ideal é bonito e não será vão. Deixaremos de ser estaduais para sermos nacionais enfim. Deixaremos de ser afrancesados, deixaremos de ser aportuguesados, germanizados, não sei que mais para nos abrasileirarmos. Eu tenho o orgulho já de dizer que sou um brasileirado. “Juvenilidade Auriverde” como brinquei meio chorando e bem sofrendo na Paulicéia Desvairada. Até nós a arte brasileira foi um plátano: árvore de ornamentação. Nós com o sacrifício de nós mesmos estamos realizando o mistério alimentar do aipim: arranca-se a planta bonita que enverdece a terra, mas, porém, surge agarrada no caule e raiz que mata a fome: essa fome da Pátria, porca parida que devora os próprios filhos. No dia em que nós formos bem filhos da nossa terra a Humanidade se enriquecerá de mais uma expressão que me parece bem grotesca: o brasileiro. Eu sempre repito isso.
Mário de Andrade